domingo, 1 de julho de 2012

RAÍZES PSICOLÓGICAS DA PSICOTERAPIA: ANATOMIA DE UMA RELAÇÃO


Vive-se hoje tempos onde a tecnologia predomina em praticamente todas as áreas humanas e sociais. Quem atualmente, urbanamente falando, consegue viver sem internet e celular, por exemplo. Muitos poucos. Embora a tecnologia seja para a humanidade uma poderosa ferramenta em seu constante avançar, bem como seja inegável a importância da mesma para a evolução do ser humano em geral e que nos facilita a vida sobremaneira, o surgimento cada vez mais rápido de novas tecnologias está gradual e processualmente levando-nos a cada vez mais sermos dependentes delas. Com a popularização crescente de smartphones, tablets, net books, games eletrônicos, iPods, redes sociais, GPS, etc e tal, tem nos levado a uma sensação subjetiva e real de que estamos em um universos múltiplo e dinâmico em constante transformação e mudanças. Mal aprendemos uma ferramenta tecnológica e já surge outra, e outra e outra...
                Certa vez, no distante ano de 1979, disse o historiador e crítico social  Cristopher Lasch que pós-modernidade gera pessoas pós-modernas. Sim a cultura do narcisismo venceu e agora impera. Alguém, até, já nos denominou de “geração fast-food”. Era, portanto, inevitável que no corre-corre da vida bulímica contemporânea e com o impregnar tecnológico em nossos cotidianos o mesmo não respingasse no campo das chamadas psicoterapias. Não falo aqui da tecnologia propriamente dita, mas da maneira de pensar tecnocrática. Pós-modernidade gera pessoas pós-modernas.
                As psicoterapias estão correndo o risco de se transformarem em abordagens psicoterápicas puramente técnicas, isto é, com predominância quase exclusiva da técnica com secundarização e quase olvidar dos aspectos psíquicos e subjetivos inerentes nos quais se baseiam o encontro terapeuta-cliente. Na balança da técnica e da arte, na qual se realiza qualquer psicoterapia, pende-se perigosamente para a técnica em detrimento da criatividade e da arte. Digo perigosamente pelo receio (ou seria temor?) de que os psicoterapeutas deste já não tão iniciante assim século XXI se transformem em psicotecnocratas, em um verdadeiro culto, muitas vezes pouco refletido, à hegemonia da técnica com consequente “esquecimento” do humano propriamente dito. Humano aqui - entenda-se - algo além e muito além do que somente síndromes e sintomas.

                A excessiva padronização de técnicas descritas em manuais, a exagerada preocupação com monitorização de comportamentos e ideações, o reducionismo pretensiosamente científico da maneira de abordar, o modelamento engessante da sistematização operante, o mapeamento enfático através de questionários, a preeminência do que é observável empiricamente, a sobreestimação do racional sobre o emocional, entre outras coisas, está empobrecendo a riqueza do encontro psicoterápico na exaltação ao sintomático. Tudo isso tem sua relevância e sua importância, mas tudo isso não é toda psicoterapia. Existe, evidente, o sintoma apresentado, a pessoa que se apresenta e a própria relação que se presentifica entre o terapeuta e o cliente/paciente. Todas as citadas existências existem em um único momento psicoterápico, assim como existe uma significativa diferença entre o melhorar e o mudar.
                Técnicas e estratégias de abordagens à parte, o que sustenta uma relação psicoterápica são os aspectos psicológicos e inespecíficos de qualquer encontro humano e intersubjetivo. O psicólogo Carl Rogers muito contribuiu para o estudo da psicoterapia, principalmente em seus elementos eminentemente subjetivos. Em sua visão claramente humanista do processo psicoterápico Rogers enfatizou o trabalho terapêutico como um facilitador do potencial de crescimento psíquico que existe no cliente, aliás, em todo ser humano. A aceitação da pessoa como ela é, a empatia e a congruência estão para Rogeres como precondições básicas que facultam, proporcionam e viabilizam a própria psicoterapia tanto como encontro humano como tratamento. Intuição, sensibilidade e compreensão emocional, feeling, timing, inventividade, comunicação e receptividade afetiva, e outros atributos pessoais que deve ter um psicoterapeuta são por demais necessários a qualquer bom funcionamento psicoterápico. Muito mais do que um psicoterapeuta faz é quem o psicoterapeuta é, pois este é, sem sombra de dúvidas, o principal instrumento da psicoterapia: o self do psicoterapeuta.
                Dentro de um rigor pretensiosamente científico estabelece-se o paradigma de que a eficácia de uma psicoterapia é a técnica empregada e a teoria na qual ela se baseia, e assim se esquece de que os efeitos terapêuticos de uma psicoterapia qualquer têm mais a ver com a relação que se estabelece. É o próprio relacionamento em si que será o grande propulsor e agente de mudança e isto, por sua vez, só será possível quando o psicoterapeuta espontaneamente se permita criar uma psicoterapia única e exclusiva, ou seja, uma psicoterapia que só existe para aquele cliente, que se construiu como relação a partir das demandas, da personalidade e das idiossincrasias da pessoa chamada cliente.
                Evidente que não estou a mencionar coisas novas. Não, pelo contrário. Talvez esteja é evocando o que estamos esquecendo quando sem nos aperceber estamos quase na iminência de nos tornarmos profissionais de manuais, muitos deles verdadeiras “receitas de bolo”. Na ânsia cientificista, que às vezes camufla uma ideologia a serviço de interesses econômicos (entre eles a indústria farmacêutica), cada vez mais se desenvolvem técnicas lastreadas e estruturadas em protocolos de atendimento voltados a tipologias e a problemas específicos com grave comprometimento à singularidade de cada pessoa ou caso. E não estou sozinho, é claro. Em minhas inquietações, questionamentos, reflexões e andanças tenho-me deparado com outros que igualmente compartilham da mesma preocupação. Entre eles gostaria de citar o excelente trabalho publicado pelo pessoal de pós-graduação em Psicologia da PUC (RS) Marta Ludwig, Marlene Strey (minha ex-orientadora de mestrado, saudades) e Margareth Oliveira, “Tratamentos Manualizados: Psicólogos Matemáticos?”. Dele reproduzo o seguinte trecho:  “As técnicas, por si só, são vazias se não houver esta base forte e bem trabalhada. Talvez seja mais benéfico para o paciente ter uma boa relação terapêutica, mesmo que não sejam trabalhadas técnicas específicas para o seu problema, do que ser submetido à técnica mais pesquisada e empiricamente eficaz se não foi estabelecido um vínculo afetivo, de empatia e de confiança”. Sim, a relação humana é fundamental.
            A relação é fundamental, principalmente porque é ela que aciona os aspectos e fatores psicológicos e potencialmente salutogênicos que há em qualquer ser humano em suas relações com outros seres humanos.  E é sobre isto que iremos versar na próxima continuação deste texto, em breve.
(continua)

Joaquim Cesário de Mello

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