domingo, 19 de agosto de 2012

O Drama de uma Personalidade


Ao ler o artigo recente de Joaquim Cesário aqui no LiteralMente sobre o amor limítrofe (ou borderline, como queiram) na personagem do filme “Betty Blues”, andei fazendo algumas reflexões sobre essa forma desmedida de “paixão”  na literatura. Não fiz muito esforço para lembrar de alguns personagens-títulos como a já citada Medeia de Eurípides (que comentei em outro artigo) Werther de Goethe, a Rainha da Noite (da Ópera A Flauta Mágica”, de Mozart) ou Cass (do conto “a Mulher mais Linda da cidade”,de Charles Bukowski), textos famosos em que essas personagens carregam  destemperos semelhantes em conseqüência de comportamentos impulsivos e destrutivos – expressão redundante? – que as levam à paixão e a desgraça.  Com exceção do personagem de Bukowski  todas as personagens são anteriores ao século XX, o que faz cair por terra a discussão de alguns psicanalistas  de que o “caráter” bordelines faz parte da nova geração das patologias dos “ideais da contemporaneidade” – um discussão caricata, repetitiva, para não dizer chata. Portanto, limítrofes, borderlines ou “emocionalmente instáveis” já desequilibravam as relações humanas desde antes de Freud, e mesmo com o surgimento de diversas abordagens psicológicas eles parecem ainda imobilizar sobremaneira analistas, psicoterapeutas e psiquiatras  do mesmo modo  que no tempos do psiquiatra francês  Philipe Pinel que se horrorizou ao descrever essa personalidade como “manie sans delire” (mania sem delírio) ou Esquirol que a descreveu “monomanias instintivas” (“monomaníacos arrastados para atos que a razão e o sentimento não determinam, que a consciência reprova e que a vontade já não tem força para reprimir”). O Horror de Pinel era justamente a impulsividade,  atos de violência extrema sem, contudo, a integridade psíquica  ou o entendimento da gravidade do ato  estarem prejudicados.

 Relacionar personagens fictícios com elementos da psicologia ou psiquiatria, como fez com profundidade Joaquim Cesário, é controverso, mas instigante – acredito, uma das características mais interessantes do LiteralMente. Alguns especialistas, contudo, supõem que a construção de personagem realizada por escritores ou diretores de cinema são caricaturas de sujeitos inexistentes. Não estão completamente errados, mas eu, particularmente, faço ressalvas a esses comentários. Penso que assim como há bons e maus profissionais “psis”, existem, por outro lado, bons e maus escritores – enfim, maus construtores de personagens –, e acho que do ponto de vista narrativo-descritivo alguns textos literários são mais verossímeis – no mínimo mais agradáveis – e trazem mais riqueza descritiva sintomatológica de determinados sujeitos do que muitas anamneses psicológicas ou psiquiátricas.  Cervantes com “D. Quixote” ou Gógol em “Diário de um Louco” por exemplo, fazem uma descrição muito minuciosa com ótimo entendimento do fenômeno delirante-alucinatório e, muitas vezes, mostram-se bem mais preciso se comparados a muitos textos puramente conceituais. Esses personagens-caso são geradores de várias leituras e interpretações  e, em algumas situações, discussões polêmicas.

                           No século XIX a vida de uma determinada mulher francesa provocou várias dessas discussões. A história de sua vida poderia ser hoje vista como corriqueira ou banal. Chamava-se Emma, uma mulher que na infância e juventude mergulhava num  devaneio muito comum as adolescentes e mulheres jovens: desenvolvia fantasiosos pensamentos de felicidade amorosa provenientes de romances sentimentais da burguesia francesa. Emma morava numa cidade de interior, era bonita e, ainda jovem, casou-se com o apaixonado Charles Bovary, um jovem médico mediano de interior. Para surpresa do que se poderia imaginar para a jovem esposa, a experiência do casamento seria vivida com sentimentos de tédio, desilusão, desapontamento e desencantamento. A rotina da vida conjugal ao lado do marido era bastante diferente do que idealizara para o casamento – Emma, na verdade, vivia uma vida de idealizações.  Ao contrário da literatura romântica da época, a vida ao lado de Charles, convidava-lhe para uma vida comum, corriqueira e sem os brilhos dos seus devaneios de adolescente.   Emma Bovary, com a ideia de uma vida conjugal condenada ao fracasso, insatisfeita, tenta resgatar, por assim dizer, as antigas fantasias de que haveria homens, maridos e casamentos ideais.  A partir daí sua vida é reconstruída, por várias dissonâncias e aventuras extraconjugais, em que ajudaria a reerguer seus desejos idealizados que, paradoxalmente, a levaria a um final trágico. Emma, no final da vida,  envenena-se por experienciar mais  fracassos e desilusões amorosas.  
                           A história de Emma poderia ser interpretada psicologicamente com o que a psicanálise chamou de caráter histérico, hoje denominado em psiquiatria como personalidade histriônica, que teria entre suas características: uma vida dramática, repleta de jogos sedutores, de “coquetismos”, pensamentos fantasiosos, carregando uma eterna idealização nas relações amorosas seguida de um, não menos infinito, sentimento de insatisfação. A histérica seria essa “eterna insatisfeita”. Emma seria, então, esta histérica freudiana. Contudo, Emma jamais existiu.

Gustave Flaubert


                           Emma é personagem-título do livro “Madame Bovary” de Gustave Flaubert – um dos romances mais importantes da literatura mundial. Apesar de ser uma mulher jamais existente, sua história foi motivos para polêmicas, proibições e condenações. O que haveria de tão escandaloso nesse livro? Os conservadores e puritanos o consideravam, na ocasião, pervertido e imoral, mas suponho que outra variante deverá ser pensada: as idealizações e  insatisfações de Emma Bovary, são retratos falados das insatisfações não só da mulher, mas de todas as pessoas.  Somos seres insatisfeitos e construímos fantasias de amor romântico  que são continuamente postas a prova. O fato de Emma ter ido ao ato seria o elemento mais ameaçador, o que poderia gerar uma ideia de que se somos como ela, somos todos transgressores ou adúlteros - o que é um equivoco. A edificação da personalidade compõe do desejo, do pensamento e do ato. o ato é imprescindível. não existem borderlines, histrionicos ou sociopatas sem atos. contudo, isso não nos impede de sermos semelhantes em desejo à Emma. Conta-se, que num determinado momento, Flaubert irritado, tivera dito ao tribunal num de seus julgamentos: “Emma Bovary c'est moi" (Emma sou eu)
                           Se olharmos para todas as pessoas-personagens com transtornos de personalidade, algo, invariavelmente, nos incomodará.  O incômodo, contudo, vem mais da semelhança que  da diferença.

Marcos Creder 

2 comentários:

rotina criativa disse...

Adorei o texto. Muito bom, muito bom mesmo.

Alice disse...

Adoro Madame Bovary, quando li pensei por que não havia lido antes. Passei a compreender melhor a insatisfação constante que acomete algumas pessoas e que pra mim a mídia ajuda muito a alimentar.
O texto está perfeito! saudade de Emma, tão "normal".