domingo, 27 de novembro de 2016

A migração no mercado de substâncias psicoativas



Desde que o tabaco foi utilizado pela primeira vez pelos europeus, demorou-se nada menos que cinco séculos, ou seja, quinhentos anos, para se constatar que a nicotina provocava dependência química e que a fumaça do cigarro continha milhares de substâncias  danosas à saúde, que vão desde os distúrbios  cárdio-respiratórios às formações de tumores malignos. Na verdade, o tabaco só foi, por assim dizer, considerado oficialmente danoso à saúde, na década de 1960, ou seja, a cerca de cinquenta anos (cinquenta anos em quinhentos de longa e larga utilização). Acredita-se que o retardo dessas descobertas  científicas tenha se dado por várias razões que aqui destaco três: 1. a falta de tecnologia para uma acurada pesquisa científica. 2. O prazer que a substância propiciava em seus usuários, ou seja o desejo em se manter fumante e por essa razão desconsiderar os seus possíveis danos. 3.  a forte pressão da indústria do tabaco - esta, talvez a mais importante. A indústria e todo jogo publicitário em relação ao fumo, minimizou, por muito tempo, os risco e deu relevância a supostos benefícios  ( isso mesmo! benefícios)

 Se se pesquisar os anúncios de marcas de cigarro na década de 1950, por exemplo,   se observará verdadeiras apologias ao bem-estar, ao vigor físico,   à  saúde - inclusive, sugerindo um ou outro fim terapêutico - com o hábito de fumar.  Esses comerciais relacionavam o uso do tabaco a beleza física, inclusive, ao  hálito agradável. Se  o cidadão daqueles anos folheasse  as revistas e jornais de sua época,  não se espantaria ao ver nos anúncios,  crianças, ou bebês, recomendando às mães a usarem uma determinada marca de cigarro, ou um  médico relatando o bem-estar e os aspectos terapêuticos, especialmente para as vias aéreas superiores, com a inalação de cigarro. Nesses anúncios nem mesmo papai Noel escapou  ao apelo da indústria.

Mesmo com todas as advertências constatadas pelo uso de tabaco, a substância continua sendo comercializada, no entanto, com várias restrições ao uso. Se estabeleceu, por exemplo, nas últimas décadas, locais de utilização,  campanhas de esclarecimento sobre os riscos da utilização do tabaco, realizado por  profissionais de saúde. Nunca se cogitou - e seria uma infantilidade se cogitar - a proibição do cigarro. A questão não passa pela proibição ou legalização do consumo, mas pela adequada restrição do uso e das campanhas preventivas e esclarecedoras de combate ao fumo.

Constatando-se que, nos últimas 500 anos, apenas nas últimas décadas  se chegou a alguma ideia de dano provocado pelo fumo, trago, em paralelo, algumas   reflexões sobre a utilização do canabis sativa - tema que vem se discutindo com frequência. Sabemos que a maconha é tão ou mais antiga na utilização quanto o tabaco, no entanto, o mesmo tabaco que hoje é banido e execrado pelos nossos cidadãos, no passado,  antes da formação da sociedade industrial, seus danos eram menores ou imperceptíveis.  Isso se deveu a utilização esporádica, muitas vezes ritualizadas (em ritos religiosos), que faziam naturalmente uma contenção  ao seu uso abusivo ou compulsivo - duas das características da  sociedade industrial e pós-industrial, que não se restringe necessariamente apenas as drogas, mas a outros hábitos e condutas (jogo, consumo, sexo, alimentos). Pode-se afirmar que, na atualidade, a organização econômica e social propiciou e propicia sobremaneira a explosão dos comportamentos  impulsivos.

Desse modo, não se pode afirmar que não há risco com a comercialização em escala industrial do canabis Sativa.  Ultimamente  vem se observando em alguns segmentos da sociedade, a ideia de que,  ao contrário de outras drogas lícitas ou ilícitas, a maconha  seria  inócua, terapêutica, com promissores resultados no tratamento de doenças como epilepsia, depressão, ansiedade ou insônia.  Argumenta-se que a maconha seria  uma substância “natural”, “orgânica” tão inócuo como numa espécie de “alface fumável”.  Essa demanda favorável ao uso de canabis me faz lembrar os antigos anúncios de cigarro. Será  um novo embuste?


Há alguns anos divulgou-se em conhecida revista britânica de farmacologia,   estudos em que se destacava que a  nicotina poderia ter efeitos terapêuticos em doenças neurológicas como Parkinson, ou nos quadros demenciais. Essa notícia, contudo, não estimulou as pessoas a voltarem ou a iniciarem o hábito de fumar. Por que? porque, a pesquisa é clara e inequívoca, não é o fumo que faz bem ou é terapêutico, mas uma substância do fumo, a nicotina, que utilizada dentro de determinados padrões e parâmetros, possa ter efeito medicinal. Esse equívoco que confunde o produto com o princípio ativo,   não está bem claro em relação ao canabis. Quando se fala de efeitos terapêuticos da maconha,  comete-se, minimamente um lapso. Não é a maconha, mas o canabidiol, substâncias química que, entre muitas outras,  contém no seu cigarro - que realmente é terapêutico. Para ser mais claro, trago mais um exemplo: há elementos químicos no veneno de cobra que são úteis à medicina, mas não se pode afirmar que jararaca faz bem à saúde.

Como disse acima em relação ao tabaco, os mesmos três pontos que destaquei  ao retardo das pesquisas, poderia ser migrado  em relação a utilização de  maconha.  Ainda não há pesquisas que possam afastar seus riscos ou trazer seu benefícios; há um desejo de utilizá-la, em razão de seus efeitos psíquicos;  e,  que considero mais relevante, há toda uma montagem industrial por trás dessa discussão - Não sejamos ingênuos.  Nos Estados do continente norteamericano - onde a ingenuidade comercial passa muito longe - em que a utilização da maconha foi liberada, houve um crescente e agressivo expansão de sua comercialização que vão desde  a produção de cigarros até bombons de maconha. Sabe-se que boa parte da indústria do cigarro que encolheu significativamente, migrou para o mercado do canabis sativa.

Com o aumento estatístico do consumo, começa já a aparecer, com mais frequência, alguns transtornos psíquicos relacionados ao seu uso. Sabe-se, e isso não é nenhuma novidade, que quadros psicóticos podem ser desencadeados ou agravados pelo uso de canabis, que síndromes ligadas à perda cognitivas vem sendo demonstrada com o seu uso crônico. Já se evidencia a dificuldade de concentração, atenção e memória com a frequente utilização, alguns desses estudos, inclusive, apontam que o uso na adolescência podem interferir no desenvolvimento intelectivo.

Enfim, não há substâncias inocentes. Talvez o canabis não seja a mais agressiva, mas isso não a torna inócua. o risco de sua utilização deve ser sempre aprofundado para que não se caia nos equívocos que vivemos no passado.

Marcos Creder

domingo, 20 de novembro de 2016

THE MAN

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Em 1978 o técnico da seleção brasileira Cláudio Coutinho autointitulou aquela seleção de "campeã moral" da copa na Argentina. Mesmo invicto o escrete brasileiro terminou em terceiro lugar por ter o Peru "aberto as pernas" pra seleção anfitriã na goleada de 6 x 0. Pois é, mutatis mutandis, foi algo parecido o que ocorreu com a última premiação do Nobel de Literatura concedido ao músico e compositor Bob Dylan. Como escreveu Marcos Creder, Dylan é um "escritor que não escreve livros". Proselitismos à parte, se era pra se homenagear textos musicais injusto, então, não se laurear com o referido Nobel a produção artística de Leonard Cohen. E olhe que não estamos apenas a falar das letras e peças musicais que ele compôs, mas igualmente a sua própria literatura. Cohen antes de se tornar músico já era um celebrado poeta e escritor canadense.Em 2011 foi vencedor do Prêmio Príncipe das Antúrias, honra esta destinada aos notáveis de várias áreas de humanas e ciência.
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Por ocasião de sua morte, em 10 de novembro deste ano, disse o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, que a capacidade que tinha Cohen de conjugar emoções fez dele um dos mais influentes músicos de todos os tempos e que seu estilo transcende os caprichos da moda. É fato, vide, por exemplo, canções como Hallelujah, Suzanne, I'm Your Man, Everbody Knows e Dance Me To End Of Love, entre tantas. E nenhum de seus sucessos se rendeu a fórmulas fáceis e comerciais. Decididamente Cohen já tinha se eternizado bem antes de ter se encantado. Diz o site R7; "do folk às composições com sintetizadores, Leonard Cohen foi ao lado de Dylan o mais próximo que um astro de rock surgido no auge do movimento chegou de unir com perfeição duas inspirações artísticas: a literatura e a música.", 
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Dizem que poesia é uma coisa e poética das letras musicais é outra. Porém não com Cohen. Suas músicas são poesias cantadas. Não é pra qualquer um. Profeticamente nos últimos anos vinha refletindo sobre sua própria mortalidade ("eu não tenho futuro/sei que meus dias são poucos"). A morte finalmente lhe chegou, como para todos chegará... um dia. De Leonard Cohen o homem se foi, deixou de existir. Ficou o poeta e o escritor que já foi comparado a James Joyce. Ficou o músico e compositor que, disse certa vez Bob Dylan, era o Kafka do blues. Ficou para sempre gravado sua voz inconfundível e única, cuja soada era grave, soturna, profunda e bela. Façamos hoje, pois, um réquiem para Leonard Cohen. Uma parte do mundo está órfã. A melhor parte.

Abaixo três das minhas mais preferidas músicas:

Dance Me To End Of Love


I'm Your Man:


The Future


Joaquim Cesário de Mello

domingo, 13 de novembro de 2016

A Teia da Solidão


A literatura e o cinema tem vários exemplos  de personagens que, por uma razão ou outra, viveram por algum tempo em solidão absoluta. Vez ou outra surge um roteiro  que se inspira no célebre personagem de Dafoe, Robinson Crusoé. São histórias instigantes que tratam da vida humana desumanizada pela solidão, solidão esta, imposta por alguma contingência, um naufrágio, um extravio, uma viagem mal sucedida. “O Náufrago”, “Perdido em Marte”, “Na Natureza Selvagem”, são exemplos de filmes que se inspiram nesse tema, além dos conhecidos roteiros inspirados  na literatura infantil, como por "Mogli", "Tarzan" ou personagens  parecidos.

 Sou da opinião de que os  temas tendem a nos interessar e a se repetir quando o tememos - como parece ser o caso - ou quando nos atraem. Pergunto, muitas vezes, o que nos faz assistir a um filme de guerra, onde casas, famílias, cidades e exércitos são trucidados? não se tem a resposta, contudo, nada nos impede de comer pipocas e, não tenha dúvidas, nos divertimos. Tememos a guerra real, a morte real, a penúria e a desumanidade. Do mesmo modo,  tememos a solidão  e, em algum lugar de nossa mente, essa mesma solidão nos encanta. Enfrentá-la tem algo de desafiador.  

Somos muitas vezes estimulados, nos dias de hoje,  a ver o mundo como uma grande aldeia  compartilhada. Um mundo cada vez menor com pessoa cada vez mais  próximas e muitos atribuem isso aos avanços tecnológicos da comunicação e da informação. Pois, afinal, alegam seus defensores, pessoas que não víamos há décadas, hoje são facilmente localizáveis numa rede social. Desde então, muitos reencontros vem ocorrendo, muitas saudações honestas e emocionadas são postadas para que todos vejam e compartilhem. O mundo, na rede social é solidário, eventualmente ponderado, sem aparentes preconceitos. Claro, existe um ou outro mal educado.   Alguns paradoxos questionam e fazem disso um verdadeiro embuste. Trago alguns acontecimentos.

Soube de um desses zum zum zuns urbanos que, num determinado edifício, desses superpopulosos, descobriram, após semanas, que uma pessoa, um senhor, havia falecido subitamente e que seu corpo só havia sido encontrado dias depois, depois que entrara em franca decomposição. A pessoa que me contou essa história, disse-me como numa profecia, “precisamos nos preparar para isso, pois esse tipo acontecimento hoje é uma raridade, no futuro será uma regra”. O paradoxo estava justamente na ideia de que apesar de muitos moradores naquele condomínio, as pessoas não se conheciam, e parece que quanto mais gente, mais distantes e cerimoniosos nos tornamos.

Um outro caso curioso e ao mesmo tempo lamentável foi de outra pessoa que ao tentar entrar em contato com a outra via “whatsapp”, não obteve respostas e entendeu que, talvez tivesse ocorrido um afastamento por conta de um eventual mal-entendido - algo muito frequente e corriqueiro  nas conversas em “rede”. Seis meses - isso mesmo, seis meses - se passaram e por acaso soubera que a pessoa tinha morrido em acidente de carro, horas depois de lhe enviar a última mensagem . Como não se tem mais telefones fixos, e não se deixa recados com terceiros ou com familiares, o anúncio de sua morte foi entregue a própria sorte.  

Costumo pensar que o mercado é um dos primeiros a perceber as mudanças nas relações subjetivas - o mercado disponibiliza produtos para as diversas  tendências contemporâneas, desde do crescimento de divórcios ao aumento da expectativa de vida dos idosos. Contavam-me, no passado, que os quadrinhos da Disney  eram sempre representados pela relação fraterna entre “tios” e “sobrinhos” por conta das grandes perdas humanas, principalmente masculina, ocorridas nas duas Grandes Guerras. A lógica é simples: a chance de sobrar, entre os sobreviventes, um  ou outro tio  era maior que um pai - esse é único. Daí veio a ideia do Tio Patinhas, Tio Donald, Tio Mickey alentar o difícil momento em que crianças europeias viviam. Zé Carioca e Carmem Miranda, nossos representantes, surgem, nesse mesmo período, a   europa devastada pelas guerras gerou migrações no mercado consumidor e criou o axioma,  “América para os americanos”. Com a solidão não poderia ser diferente. Existe hoje um crescente mercado destinado aos solitários, desde produtos de alimentação às moradias - cada vez mais precisa-se de menos de metros quadrados para se viver. Existe, inclusive, o turismo solitário, onde o sujeito viaja em “grupo” de solitários que limitam-se, assim como nas redes sociais, a viverem felizes e solidários pelo tempo que a viagem durar.

Com o sentimento de desamparo cada vez mais alargado, o sofrimento psíquico tenderá a se deslocar para os quadros ansiosos próprios das situações de desamparo, como os quadros  de transtorno de pânico. Quem já teve alguma experiência com esse tipo de quadro ansioso, sabe muito bem que, um dos sentimentos mais frequentes, o pano de fundo, é um intenso temor que algo lhe aconteça em situações vulneráveis. a vulnerabilidade? a solidão e o desamparo. A angústia do desamparo reitera a frase sempre dita no avassalador mundo contemporâneo: nunca fomos tão sozinhos. Provavelmente sempre vivemos rodeado por desamparo, mas algo de simbólico permeava e nos dava uma solidão acompanhada. O contato com o mundo real que a modernidade nos proporcionou nos tirou o véu do destemor. 

Marcos Creder

domingo, 30 de outubro de 2016

A vida e a Obra de uma Teoria

A biografia é uma modalidade sempre geradora de controvérsias e acredito que a maioria se deve a vulgarização, a má qualidade de seus autores,  e, por fim, ao próprio biografado consumiu livros volumosos. Calculei , depois de algumas leituras, que a vida de um sujeito dura mais ou menos 500 páginas  escritas incluindo as referências bibliográficas ( risos). Geralmente as cem primeiras contam a infância, em que se tenta desvendar das razões psicológicas que fizeram daquele sujeito gênio ou tirano, ou ambos. Nas duzentas páginas seguintes, descreve-se  as contribuições ou o legado que deixou a humanidade e de todos só percalços que atravessou. Por fim,  nas últimas cem ou cento e cinquenta páginas aparecem as doenças, os estertores e quando o vida termina consequente de alguma tragédia os detalhes de sua morte, são meticulosamente esmiuçados  - infelizmente nas biografias, trago o spoiler: todos morrem no final.

Gosto desse gênero literário - confesso que comecei a gostar mais recentemente, depois de longos anos de inexplicável  preconceito - Acho o texto biográfico  trabalhoso, dedicado, alguns muito bem escritos, mas noutros, muitas vezes, se peca por alguns equívocos que aqui destaco: existe uma tendência exagerada de demonizar ou santificar o biografado a depender do que ele representa para os segmentos que sua vida venha a interessar; outro erro ocorre, eventualmente, quando se tenta tornar a leitura mais agradável, romanceando a vida do sujeito fazendo dele, não mais uma pessoa, mas um personagem, uma invenção do autor. Isso ocorre acidentalmente, sem a consciência plena do autor que se  envolve sorrateiramente com a vida da personalidade pesquisada - o risco extremo é do texto passar a narrar uma autobiografia.  Mesmo que haja algo de ficcional nas biografias - não temos como fugir da ficção das palavras escritas -  não é ou não deveria ser  essa a intenção dos seus leitores.  Tenho entendimento que o autor deve ou deveria destituir o biografado do lugar de personagem,  da invenção e de ícone  e trazê-lo de volta  a sua condição de ser humano comum.

E é baseado nesses preceitos que li a mais recente biografia de Freud  de Elizabeth Roudinesco publicada recentemente no Brasil. “Sigmund Freud em sua Época e em nosso Tempo (belo título, aliás) é uma biografia mais perto da reflexão acadêmica do que dos detalhes sórdidos da vida do protagonista,  e isso a deixa mais perfeita. Suponho que para os que nunca conheceram esse sujeito Sigmund Freud - fato raro - talvez seja um livro por demais denso - acredito que seja uma biografia para os que tem alguma familiaridade com o jargão da psicanálise.  Traz, contudo, significativas vantagens perante algumas biografias anteriores,  pois é meticulosa e bem documentada, fato que põe por terra alguns mitos comumente ditos em relação a vida de Freud.   A famosa frase “Eu lhes trouxe a peste” atribuída a ele, quando estava chegando de  viagem ao continente norte-americano, é um desses mitos, essa frase  jamais foi pronunciada ou escrita por Freud.  A ideia romântica de que o livro “A Interpretação dos Sonhos” teria sido um fiasco de público e de crítica - ideia que  teria como objetivo fazer do pai da psicanálise um sujeito persistente,  obstinado, lutador, também é uma de outras inverdades. Esse livro, obviamente, não foi nenhum best-sellers, no entanto, foi acolhido com resenhas - não passou despercebido - pelos principais publicações vienenses. Talvez, como todo o escritores ou cientista,   Freud quisesse mais…   
.  
frase falsa atribuída a Machado de Assis, imagem de Monteiro Lobato
Freud é dos personagens  mais comentados desde o século XIX. Apesar de muitos contestarem suas teorias (assim mesmo, no plural) , ainda assim, se fala o nome de Freud com muita frequência desde os textos especializados aos comentários de rede social - nesta, em especial, se postam frases que certamente faria o falecido criador da psicanálise arregalar os olhos ou gargalhar. Nas redes sociais, muitos sujeitos de baixa auto-estima escrevem textos, em sua maioria, medíocres, para ser lido por outro semelhante (que nunca ousaram folhear alguns livros) e atribuem à Nietzsche, à Jung, à Clarice Lispector, à Rui Barbosa à Machado de Assis e obviamente Freud.  Um conhecido texto denominado "Se"  foi durante toda minha juventude atribuída a Jorge Luiz Borges, texto que jamais este escritor argentino escreveu. Esse texto equivocado, aliás, além de frequentar as redes sociais, comumente está em dedicatórias  e em epígrafes de livros, artigos e publicações científicas.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEioW4wY4HFgYPLvTIrtW21McuuzspLT0D-GyKoR_ndtDalwR-Mg5oHAmiQfd39vfPXPcn93ExebIVLYW2oh2SXdHw_fNQVxKJTF3xq_STDQDsIXOPaJMWohhH87irA82tbGC2HXfUCU2-uu/s1600/12-04-29-austria-Central+Vienna+Early+Spring+1945.jpg


Essa nova biografia de Freud de Roudinesco traz nuances que antes não pareciam claras nas palavras dos  biógrafos anteriores. Na verdade, como disse anteriormente, muito desses biógrafos tiveram problemas em dosar o protagonista, ora reverenciando ora demonizando. Penso que este lançamento de Roudinesco aproximasse do equilíbrio, afasta-se de posturas maniqueístas, fazendo de Freud um personagem menos épico e mais cotidiano, um sujeito vaidoso,  eventualmente ressentido de seus pares, com maior autenticidade .  O texto contextualiza com mais precisão elementos históricos importantes  da conturbada primeira metade do século XX tempo em que  o movimento psicanalítico se iniciou, atravessou e se sedimentou. Período em que  duas grandes guerra, que fez com que o berço da psicanálise, Viena,  viesse a se tornar uma terra devastada.


Marcos Creder     

domingo, 23 de outubro de 2016

TEUS JOELHOS

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Teus joelhos confessam o ocultar dos mistérios.

No subir deles, além das dobras do vestido,
espreitam adocicados encantos perigosos.

Como sereias teus joelhos convidam
entoando melodias silenciosas
que são feitiços disfarçados de promessas
arrastando a última sobra dos meus restantes desejos juvenis.

Temo naufragar no oceano noturno das coxas
e desaparecer para sempre submerso
no inquietar quase morno das águas sem fundo
que sei que teus joelhos matreiramente revelam.

Existem joelhos gostosos, sensuais,
outros tortos, redondos e dengosos,
mas teus joelhos são fronteiras entre
o que em ti se mostra e o que em ti se encobre.

Acima dos curvilíneos joelhos e abaixo dos panos
omites dos meus olhos o palpitar da tua nudeza.
Que mulher deve habitar em teu secreto meio?
Quantos sonhos de homens deves devorar
com o alongamento dos teus joelhos?

Resultado de imagem para mulher sensual, pinturaQuisera eu com minhas insanas mãos
aproximar-me do portal das tuas incógnitas
e te tocar suave e macio, sem pressa,
começando ali onde tudo em ti começa:
nos teus joelhos que confessam o ocultar dos mistérios.

Ah! se teus joelhos fossem feitos 
                                                        pra mim...


Joaquim Cesário de Mello

domingo, 16 de outubro de 2016

O premiado escritor que não escreve livros



Penso que  esse texto de hoje irá de encontro à opinião de uma multidão de  fãs entusiasmados com a recente premiação do cantor Bob Dylan ao Prêmio Nobel de Literatura. Adianto, faço parte de uma geração que foi  muito apaixonada - acredito até de maneira exagerada -  pela música folk e pelo rock norteamericanos e, se tem uma coisa que admiro nesse pais, é, sem dúvida, sua produção musical - ninguém mais poderia representá-la melhor que o próprio  Bob Dylan. Sempre achei suas músicas maravilhosas com belas e simples melodias e com letras bem construídas - elementos suficientes para colocá-lo facilmente no ranking  dos melhores músicos  do século XX.

Gosto das  cancões que se aprendem com assovios como Blowin' in The Wind ou Mr Tambourine Man. Ouvir um ou outro trecho dessas  cancões dos anos 60 e 70, fato cada vez mais raro, ainda me emociona como se trouxesse de volta parte da alegria e da rebeldia próprias da juventude. Hoje sou menos rebelde e talvez mais avesso aos impulsos ou aos repentes reformistas no âmbito das artes. Explico-me.

Concordo inteiramente com  a frase de Aldous  Huxley que diz que "Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música".  Nada mais misteriosos, mais complexo  e mais enigmático do que uma combinação de notas musicais que nos emociona sem nos dizer qualquer palavra. Há quem relacione as canções as cantilenas vividas, ainda na vida intrauterina, dos batimentos cardíacos materno - a nossa primeira e mais acolhedora experiência com ao ritmo e a melodia. Desde então, já nascidos, procuramos acalentar nossas pequenas aflições retornando à música - que em grego essa palavra se faz mais feminina significando literalmente a "arte das musas".

Partilho também da ideia, e isso é polêmico, de que uma peça musical se constitui essencialmente da melodia. O texto, a letra ou a poética das palavras dão sustentação consolidando harmonia ao tema musical. As palavras na música são encantadas pela sedução do tema melódico - a letra de uma canção, quando declamada separado da melodia, muitas vezes perde o lirismo que só a canção revelaria. Por muito tempo grandes compositores usaram de trechos bíblicos ou sagrados para preencher suas várias possibilidades melódicas. Se escutarmos, por exemplo,  uma peça de Bach, observaremos que a utilização da letra foi um argumento, quase um pretexto, para criar diferentes variações musicais - nesse tempo, inclusive, as frases cantadas geralmente em latim se repetiam tediosamente - um bom exemplo está na Cantata Magnificat. A soberania da melodia é inquestionável até mesmo na ópera. Quem, entre os leitores, pode se recordar dos autores dos libretos das óperas de Mozart, de Puccini, de Verdi?

Fui, e ainda sou, seduzido por Bob Dylan muito mais pela melodia, embora que reconheça que suas canções tenham letras geniais, -algumas, confesso, não conheço suas traduções. Pergunto-me, as letras de Bob Dylan são tão geniais a ponto de fazê-lo um homem de literatura? que outro texto de relevância foi escrito pelo premiado cantor? onde se encontram os livros de Bob Dylan? Penso que aí começa a minha discordância.

A palavra literatura remete ao texto impresso, à leitura, à palavra escrita desprovida da sedução da melodia. Se há musicalidade na poesia de Dante ou de Fernando Pessoa, isso  não os tornam (jamais) músicos. A musicalidade é uma característica implícita do poema e de textos literários, do mesmo modo que há letras poéticas - de boa qualidade - em cancões populares. Contudo, penso que isso não seja suficiente para elevar canções a condição de obra literária ou de referência a alta literatura. Um prêmio da literatura mundial pressupõe, ou deveria pressupor, que se contemple o que há de melhor na produção de texto de palavras escritas. Aqui acredito que tenham sobrevalorado as palavras cantadas de Bob Dylan.

A premiação literária concedida ao músico, que, como disse, tem seus inquestionáveis méritos, não comete injustiça com outros escritores - as injustiças vão sempre ocorrer - , mas revela nas entrelinhas, uma crise de identidade na literatura  frente aos outros formas de expressões artísticas - não me surpreenderá se, a partir de agora, deixemos de premiar autores de livros e passemos a premiar cineastas e roteiristas de cinema e de televisão. Se com o Nobel, a academia sueca quis homenagear o artista popular, prestou um grande desserviço ao livro, as palavras impressas, a boa prosa ou a poesia sem canção, e ainda revelou a fragilidade do texto literário nos tempos atuais. A premiação criou um paradoxo (e uma confusão) entre a produção musical e a literária que culminou na consagração de um escritor sem livros e sem leitores.

Marcos Creder