domingo, 13 de novembro de 2016

A Teia da Solidão


A literatura e o cinema tem vários exemplos  de personagens que, por uma razão ou outra, viveram por algum tempo em solidão absoluta. Vez ou outra surge um roteiro  que se inspira no célebre personagem de Dafoe, Robinson Crusoé. São histórias instigantes que tratam da vida humana desumanizada pela solidão, solidão esta, imposta por alguma contingência, um naufrágio, um extravio, uma viagem mal sucedida. “O Náufrago”, “Perdido em Marte”, “Na Natureza Selvagem”, são exemplos de filmes que se inspiram nesse tema, além dos conhecidos roteiros inspirados  na literatura infantil, como por "Mogli", "Tarzan" ou personagens  parecidos.

 Sou da opinião de que os  temas tendem a nos interessar e a se repetir quando o tememos - como parece ser o caso - ou quando nos atraem. Pergunto, muitas vezes, o que nos faz assistir a um filme de guerra, onde casas, famílias, cidades e exércitos são trucidados? não se tem a resposta, contudo, nada nos impede de comer pipocas e, não tenha dúvidas, nos divertimos. Tememos a guerra real, a morte real, a penúria e a desumanidade. Do mesmo modo,  tememos a solidão  e, em algum lugar de nossa mente, essa mesma solidão nos encanta. Enfrentá-la tem algo de desafiador.  

Somos muitas vezes estimulados, nos dias de hoje,  a ver o mundo como uma grande aldeia  compartilhada. Um mundo cada vez menor com pessoa cada vez mais  próximas e muitos atribuem isso aos avanços tecnológicos da comunicação e da informação. Pois, afinal, alegam seus defensores, pessoas que não víamos há décadas, hoje são facilmente localizáveis numa rede social. Desde então, muitos reencontros vem ocorrendo, muitas saudações honestas e emocionadas são postadas para que todos vejam e compartilhem. O mundo, na rede social é solidário, eventualmente ponderado, sem aparentes preconceitos. Claro, existe um ou outro mal educado.   Alguns paradoxos questionam e fazem disso um verdadeiro embuste. Trago alguns acontecimentos.

Soube de um desses zum zum zuns urbanos que, num determinado edifício, desses superpopulosos, descobriram, após semanas, que uma pessoa, um senhor, havia falecido subitamente e que seu corpo só havia sido encontrado dias depois, depois que entrara em franca decomposição. A pessoa que me contou essa história, disse-me como numa profecia, “precisamos nos preparar para isso, pois esse tipo acontecimento hoje é uma raridade, no futuro será uma regra”. O paradoxo estava justamente na ideia de que apesar de muitos moradores naquele condomínio, as pessoas não se conheciam, e parece que quanto mais gente, mais distantes e cerimoniosos nos tornamos.

Um outro caso curioso e ao mesmo tempo lamentável foi de outra pessoa que ao tentar entrar em contato com a outra via “whatsapp”, não obteve respostas e entendeu que, talvez tivesse ocorrido um afastamento por conta de um eventual mal-entendido - algo muito frequente e corriqueiro  nas conversas em “rede”. Seis meses - isso mesmo, seis meses - se passaram e por acaso soubera que a pessoa tinha morrido em acidente de carro, horas depois de lhe enviar a última mensagem . Como não se tem mais telefones fixos, e não se deixa recados com terceiros ou com familiares, o anúncio de sua morte foi entregue a própria sorte.  

Costumo pensar que o mercado é um dos primeiros a perceber as mudanças nas relações subjetivas - o mercado disponibiliza produtos para as diversas  tendências contemporâneas, desde do crescimento de divórcios ao aumento da expectativa de vida dos idosos. Contavam-me, no passado, que os quadrinhos da Disney  eram sempre representados pela relação fraterna entre “tios” e “sobrinhos” por conta das grandes perdas humanas, principalmente masculina, ocorridas nas duas Grandes Guerras. A lógica é simples: a chance de sobrar, entre os sobreviventes, um  ou outro tio  era maior que um pai - esse é único. Daí veio a ideia do Tio Patinhas, Tio Donald, Tio Mickey alentar o difícil momento em que crianças europeias viviam. Zé Carioca e Carmem Miranda, nossos representantes, surgem, nesse mesmo período, a   europa devastada pelas guerras gerou migrações no mercado consumidor e criou o axioma,  “América para os americanos”. Com a solidão não poderia ser diferente. Existe hoje um crescente mercado destinado aos solitários, desde produtos de alimentação às moradias - cada vez mais precisa-se de menos de metros quadrados para se viver. Existe, inclusive, o turismo solitário, onde o sujeito viaja em “grupo” de solitários que limitam-se, assim como nas redes sociais, a viverem felizes e solidários pelo tempo que a viagem durar.

Com o sentimento de desamparo cada vez mais alargado, o sofrimento psíquico tenderá a se deslocar para os quadros ansiosos próprios das situações de desamparo, como os quadros  de transtorno de pânico. Quem já teve alguma experiência com esse tipo de quadro ansioso, sabe muito bem que, um dos sentimentos mais frequentes, o pano de fundo, é um intenso temor que algo lhe aconteça em situações vulneráveis. a vulnerabilidade? a solidão e o desamparo. A angústia do desamparo reitera a frase sempre dita no avassalador mundo contemporâneo: nunca fomos tão sozinhos. Provavelmente sempre vivemos rodeado por desamparo, mas algo de simbólico permeava e nos dava uma solidão acompanhada. O contato com o mundo real que a modernidade nos proporcionou nos tirou o véu do destemor. 

Marcos Creder

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