domingo, 16 de outubro de 2016

O premiado escritor que não escreve livros



Penso que  esse texto de hoje irá de encontro à opinião de uma multidão de  fãs entusiasmados com a recente premiação do cantor Bob Dylan ao Prêmio Nobel de Literatura. Adianto, faço parte de uma geração que foi  muito apaixonada - acredito até de maneira exagerada -  pela música folk e pelo rock norteamericanos e, se tem uma coisa que admiro nesse pais, é, sem dúvida, sua produção musical - ninguém mais poderia representá-la melhor que o próprio  Bob Dylan. Sempre achei suas músicas maravilhosas com belas e simples melodias e com letras bem construídas - elementos suficientes para colocá-lo facilmente no ranking  dos melhores músicos  do século XX.

Gosto das  cancões que se aprendem com assovios como Blowin' in The Wind ou Mr Tambourine Man. Ouvir um ou outro trecho dessas  cancões dos anos 60 e 70, fato cada vez mais raro, ainda me emociona como se trouxesse de volta parte da alegria e da rebeldia próprias da juventude. Hoje sou menos rebelde e talvez mais avesso aos impulsos ou aos repentes reformistas no âmbito das artes. Explico-me.

Concordo inteiramente com  a frase de Aldous  Huxley que diz que "Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música".  Nada mais misteriosos, mais complexo  e mais enigmático do que uma combinação de notas musicais que nos emociona sem nos dizer qualquer palavra. Há quem relacione as canções as cantilenas vividas, ainda na vida intrauterina, dos batimentos cardíacos materno - a nossa primeira e mais acolhedora experiência com ao ritmo e a melodia. Desde então, já nascidos, procuramos acalentar nossas pequenas aflições retornando à música - que em grego essa palavra se faz mais feminina significando literalmente a "arte das musas".

Partilho também da ideia, e isso é polêmico, de que uma peça musical se constitui essencialmente da melodia. O texto, a letra ou a poética das palavras dão sustentação consolidando harmonia ao tema musical. As palavras na música são encantadas pela sedução do tema melódico - a letra de uma canção, quando declamada separado da melodia, muitas vezes perde o lirismo que só a canção revelaria. Por muito tempo grandes compositores usaram de trechos bíblicos ou sagrados para preencher suas várias possibilidades melódicas. Se escutarmos, por exemplo,  uma peça de Bach, observaremos que a utilização da letra foi um argumento, quase um pretexto, para criar diferentes variações musicais - nesse tempo, inclusive, as frases cantadas geralmente em latim se repetiam tediosamente - um bom exemplo está na Cantata Magnificat. A soberania da melodia é inquestionável até mesmo na ópera. Quem, entre os leitores, pode se recordar dos autores dos libretos das óperas de Mozart, de Puccini, de Verdi?

Fui, e ainda sou, seduzido por Bob Dylan muito mais pela melodia, embora que reconheça que suas canções tenham letras geniais, -algumas, confesso, não conheço suas traduções. Pergunto-me, as letras de Bob Dylan são tão geniais a ponto de fazê-lo um homem de literatura? que outro texto de relevância foi escrito pelo premiado cantor? onde se encontram os livros de Bob Dylan? Penso que aí começa a minha discordância.

A palavra literatura remete ao texto impresso, à leitura, à palavra escrita desprovida da sedução da melodia. Se há musicalidade na poesia de Dante ou de Fernando Pessoa, isso  não os tornam (jamais) músicos. A musicalidade é uma característica implícita do poema e de textos literários, do mesmo modo que há letras poéticas - de boa qualidade - em cancões populares. Contudo, penso que isso não seja suficiente para elevar canções a condição de obra literária ou de referência a alta literatura. Um prêmio da literatura mundial pressupõe, ou deveria pressupor, que se contemple o que há de melhor na produção de texto de palavras escritas. Aqui acredito que tenham sobrevalorado as palavras cantadas de Bob Dylan.

A premiação literária concedida ao músico, que, como disse, tem seus inquestionáveis méritos, não comete injustiça com outros escritores - as injustiças vão sempre ocorrer - , mas revela nas entrelinhas, uma crise de identidade na literatura  frente aos outros formas de expressões artísticas - não me surpreenderá se, a partir de agora, deixemos de premiar autores de livros e passemos a premiar cineastas e roteiristas de cinema e de televisão. Se com o Nobel, a academia sueca quis homenagear o artista popular, prestou um grande desserviço ao livro, as palavras impressas, a boa prosa ou a poesia sem canção, e ainda revelou a fragilidade do texto literário nos tempos atuais. A premiação criou um paradoxo (e uma confusão) entre a produção musical e a literária que culminou na consagração de um escritor sem livros e sem leitores.

Marcos Creder   

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