sábado, 8 de novembro de 2014

DIÁRIO DE AULA - CLÍNICA







Sabe emocionalidade exagerada e demais? Sabe aquela pessoa que está sempre querendo chamar a atenção? Sabe aqueles indivíduos dramáticos, flertadores e inapropriadamente sedutores? Sabe aqueles que são sensíveis, sensíveis ao extremo, que quando ouvem alguma música triste choram e se entristecem horas a fio? Sabe o sujeito que logo após nos conhecer demonstra uma intimidade que até parece um amigo de infância? Pois é, talvez estejamos frente a uma personalidade histriônica (PH).
Além das características acima, a PH manifesta egocentrismo e autocomplacência. A teatralidade e dramaticidade observadas no comportamento histriônico nos remete ao termo histrião que na Antiguidade significava o ator que representava as farsas bufonas, cômicas ou trágicas - peças teatrais estas que visavam criar impacto do expectador. Porém isso não quer dizer que a expressividade emocional exagerada dos histriônicos seja uma simulação ou artificialidade. Eles realmente acreditam em suas próprias teatralidade, isto é, toda aquela emotividade florida existe, contudo superficialmente. É como se elas somente pudessem se comunicar de maneira exibicionista. Neste sentido não estamos frente a um ator ou atriz deliberado, mas sim frente a uma vítima - vítima de um transtorno de personalidade, reconhecidamente classificado no CID-10 e DSM-V como Transtorno de Personalidade Histriônica (TPH). 
A pergunta que logo se faz é: o que levou a pessoa a ser assim? Em outras palavras, qual a etiologia de tal comportamento desadaptativo, disfuncional, inadequado e, por que não dizer, patogênico? Para Fenichel no caráter histriônico há sempre uma fuga da realidade para a fantasia como uma espécie de tentativa de dominar a ansiedade através de uma representação frente a uma platéia. Há quem fale que nas raízes da PH existe uma combinação de inadequação materna e de pseudomasculinidade paterna, gerando assim uma dificuldade na construção da identidade sexual da pessoa. Outros falam de uma mãe histerogênica e de um pai narcisicamente sedutor. Já outros destacam os aspectos genéticos e constitucionais, além dos adquiridos (psicossociais). Seja lá como for, provavelmente devem ser causas multifatoriais. 
Pela própria história do conceito de histeria a psicoterapia psicodinâmica, além da psicanálise, encontra-se na base do tratamento do TPH. O foco predominante é o de aumentar a consciência do paciente sobre a superficialidade de suas experiências emocionais que, muitas vezes, refletem em seus medos inconscientes do aprofundamento afetivo e dos compromissos relacionados a uma intimidade verdadeira. É fundamental, por parte do psicoterapeuta e do setting, estabelecer-se um limite firme e claro ao comportamento sedutor do indivíduo com TPH, mantendo-se a postura de compreensibilidade e entendimento deste tipo de comunicação apresentada pela paciente. Em meio a toda dramaticidade e emocionalidade excessiva e sedutora, o terapeuta deve ficar constantemente atento a sua contratransferência, para evitar enredar pela relacionamento histérico proposto pelo comportamento, fenomenologia e dinâmica da PH e do quadro clínico. 
Não confundamos que por ser uma pessoa (afetivamente carente) que geralmente busca psicoterapia e de imediato tenda a expressar facilmente seus sentimentos (buquê afetivo), com um paciente de fácil atendimento. O TPH tem uma tendência a "ver" o terapeuta como uma espécie de salvador da pátria, e em sua voracidade faminta dramatiza sua necessidade de ajuda. São pessoas que muitas vezes buscam o serviço clínico não para se tratarem (lembrar que um transtorno de personalidade não é uma doença em si, mas um jeito de ser que lhe causa sofrimento e que gera sofrimento), porém para terem atenção. Jamais esquecer que as queixas apresentadas frequentemente são exageradas e volúveis. Por também terem uma forte inclinação de apresentarem sintomas somáticos ou dissociativos, cabe ao psicoterapeuta reconhecer que tais sintomas são uma forma de expressão e, assim sendo, validá-los no sentido de aceitá-los com a importância que os mesmos tem para o paciente. 
Conforme o critério diagnóstico contido no DSM-V, o TPH manifesta um estilo de discurso excessivamente impressionista e, ao mesmo tempo, carente de detalhes. Todavia, lembremos que todo floreio emotivo-narrativo é superficial, isto é, trata-se de uma organização de personalidade empobrecida em sua capacidade reflexiva sobre suas emoções e sentimentos, visto ser seu estilo comunicacional mais primitivo e oral onde muitas vezes as funções da psiquê são exercidas pelo soma (corpo). Por esta razão são pessoas bastante propensas a acting-outs. Dentro do ambiente clínico suas emocionalidades dramáticas e seus histrionismos são movimentos regressivos onde a ação predomina sobre a palavra (pensamento). Tal estilo comunicacional melodramático, infantilizado e pueril (impregnado de gestualidade e de "caras e bocas") não é volitivo por parte do paciente, ele apenas até então é assim. É assim que ele sabe "pensar" e falar.
Estima-se que 2 a 3% da população geral apresente TPH, sendo a maioria mulheres. Em contextos clínicos ambulatoriais a estimativa aumenta para algo em torno de 10 a 15%. Podemos, então afirmar, que conjugadamente o Transtorno da Personalidade Borderline, o TPH represente os principais transtorno de personalidade que procuram ajuda psicoterápica. A indicação é frequentemente para uma psicoterapia individual não suportiva, isto é, evitando-se, regra geral, uma abordagem de apoio, com vistas a focar mais os sentimentos e as emoções exibidas.
Por se tratar não de um transtorno mental, mas sim de um transtorno de personalidade, a abordagem psicoterápica não é de curto prazo, podendo se estender, em média, de um a quatro anos. Deve-se evitar, ainda, a manualização da psicoterapia, pois não se trata de um tratamento que se pode reduzir a uma série de passos a serem seguidos de maneira padronizada. Isto não quer dizer que o psicoterapeuta não tenha suas estratégias e que não busque alcançar metas. Uma das estratégias possíveis e utilizáveis é procurar compreender, explorar e elaborar os padrões conflituosos de relacionamento que irão surgir no contexto do ambiente clínico. Em outras palavras, a relação terapeuta-paciente é um recurso de trabalho e entendimento. Busca-se, ainda, priorizar o tema da sessão a ser trabalhado, explorá-lo à luz dos aspectos conscientes e menos consciente percebidos pelo paciente, interpretando os conflitos ora em manejo com as queixas apresentadas e com os objetivos da traçados para a psicoterapia. Seja qual a abordagem diretamente empregada (analítica, cognitiva-comportamental, interpessoal, etc) ela sempre terá como finalidade melhorar a rigidez comportamental do cliente. Para tal é mister direcionar em relação aos aspectos rígidos da personalidade que têm origem psicológica e que reflitam em condutas pessoais inflexíveis e desadaptativas.
"O que o paciente está evitando ao agir assim"? "O que ele está querendo dizer por detrás de todas esta dramatização e exagero"? "Que relação tem o que o paciente discursa com sua história de vida"? "Como estou me sentido frente ao paciente"? "Qual o verdadeiro sentimento que se esconde na encenação emocional"? "Que papel o paciente está atribuindo ao outro e a mim"? "Como o paciente está me vivenciando"? "Qual a correlação entre a temática de hoje e as temáticas passadas abordadas"? "O que ele(a) quer do outro ou de mim"? "Por que isso lhe gera ansiedade"? "Por que ele não está sentindo isso"? "Ele(a) está com medo de quê"? Estas e outras perguntas que o terapeuta se faz irá influenciar seus manejos e permear suas intervenções.
Um manejo que pode encontrar espaço e aplicabilidade no tratamento com pessoas histriônicas é a utilização do "princípio da dominância afetiva" - mencionado no livro "Psicoterapia Dinâmica das Patologias de Personalidade", de Otto Kernberg et all - que, já em 1941, Fenichel também denominava de "princípio econômico da interpretação". Aplicando o "princípio da dominância afetiva" o psicoterapeuta intervem no material apresentado pelo cliente onde ele está mais investindo afeto ou, pelo contrário, onde o afeto parece suprimido, como é o caso, por exemplo, do paciente narrando uma experiência assustadora de maneira calma e objetivamento intelectualizada (mecanismo de defesa chamado de isolamento). O fato é descrito desacompanhado das emoções correlatas. Claro que um indivíduo com TPH muito geralmente traz seu material eivado de emocionalidade, sendo o exemplo dado mais comum em pessoas com Transtorno de Personalidade Anancástica. É necessário, portanto, trabalhar reflexivamente a afetividade envolvida na temática dentro de um contexto de pertinência e realidade, buscando sempre melhor significar os sentimentos e afetos. Em outras palavras, sair do superficial e rumar para a profundidade subjetiva. Em termos psicodinâmicos, abordar a conflitiva atual à luz de sua derivação e/ou ativação dos conflitos básicos ou nucleares. O princípio é o de nortear a análise e compreensão das conflitivas presentes do paciente partindo do exterior (superfície) para o interior (profundidade).
Uma das regras básicas da abordagem psicoterápica é auxiliar o paciente a deixar de apenas relatar seus sentimentos de maneira impressionista para refletir mais cognitivamente. Suas percepções sobre as coisas que vivencia é vaga e dispersa, fazendo-se necessário instigar o discurso em busca de mais detalhes. Como diz Glen Gabbard "a experiência interna do paciente histérico é com frequência a de uma folha ao vento, varrida por poderosos estados afetivos", razão pela qual o estímulo à reflexão à atenção aos detalhes (interna e externamente) ajuda-o a ligar sentimentos a ideias. A superficialidade com que vive os sentimentos é uma defesa contra afetos subjacentes, provavelmente perturbadores.
Devido ao potencial do surgimento da transferência erótica por parte do paciente com TP, é necessário o exame contínuo, por parte do terapeuta, de seus sentimentos contratransferenciais. O monitoramento da contratransferência contribui para que a transferência erótica - que em sentido histérico surge gradualmente - possa ser minimizada e embatida através da análise dos significados e carências nela embutidos, relacionando-os com relacionamentos atuais e passados do paciente.
O bom de tudo isso, afinal, é que são pacientes que facilmente se vinculam ao terapeuta, o que, por sua vez, contribui para o desenvolvimento de uma aliança terapêutica, desde que o profissional entenda que tamanha facilidade é em grande parte consequência de expectativas mágicas e infantis inconscientemente transferidas à sua figura.
Trata-se de uma clínica florida e multicolorida e que há mais de um século se estuda e melhor se conhece. A bibliografia é vasta e polivalente. Entre tantos, sugere-se: PSICOTERAPIA PSICODINÂMICA PARA TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE, de Clarkin, Fonagy e Gabbard; PSIQUIATRIA PSICODINÂMICA NA PRÁTICA CLÍNICA, de Glen Gabbard; PSICOTERAPIA DINÂMICA DAS PATOLOGIAS LEVES, de Caligor, Kernberg e outros; PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇÃO ANALÍTICA, de Cláudio Eizirik e outros; e TERAPIA COGNITIVA DOS TRANSTORNOS DE PERSONALIDADE, de Beck, Freeman e Denise Davis.
Talvez se não fossem os histéricos e histriônicos a psicologia clínica demoraria um pouco mais a nascer. Ou talvez até o percurso da psicologia clínica fosse outro.

Joaquim Cesário de Mello

2 comentários:

Anônimo disse...

Me descreveu muito bem. Pena que só agora tenha tomado consciência dessa personalidade maldita. Pois é, sou assim, melodramática, superficial e infantil. Talvez possa nascer outra vez e não ser tão desprezível. Só faltou falar que os transtornos de personalidade também levam ao suicídio. Principalmente quando se está em crise de sei lá o que... Pra mim já deu.

Anônimo disse...

Esse meu professor é genial adoro o blog dele!