domingo, 2 de novembro de 2014

A culpa nos adoeceu




Desde que iniciei minha carreira profissional, faço interconsulta psiquiátrica em hospitais gerais. O que é isso? Interconsulta é a área da psiquiatria que trabalha o fenômeno psíquico em conjunto com outras doenças da medicina - clínica médica, cardiológica, ciruirgia, endocrinológica,reumatológica etc. O interconsultor, em tese, não seria apenas um fornecedor de parecer psiquiátrico, como muitos pensam, mas um profissional que transita entre as manifestações psíquica e às doenças somáticas e interfere na relação médico-paciente-instituição hospitalar.  Enfim, a função de interconsultor envolve o entendimento dessa relação entre sujeitos, e desses sujeitos com a doença.

Uma pergunta inicial e comum entre os que têm curiosidade por essa área,  é saber se os eventos psíquicos "fabricam" doenças físicas, ou ainda, se as doenças físicas interferem no psiquismo. A resposta que dou é imprecisa: não temos subsídios para separar, como continentes distintos, o lugar do psíquico do lugar do corpóreo. Embora possa parecer bem definidos, não  se sabe ao certo quais são suas  fronteiras, se é que existem. Há várias argumentos que defendem a cisão, e, outros, a fusão do corpo com a mente - essa discussão é antiga que tão cedo  se terá respostas. O que trago nesse pequeno artigo são as correspondências que há entre o sofrimento físico e as teorias leigas construídas pelo sujeito.  A pergunta: até que ponto  nossa psiquê  elabora uma teoria sobre a doença e o que ela nos quer dizer?

Apesar de vivermos numa época em que as ciências naturais  predominam com complexas teorias fisiológica, anatômica, citológico, bioquímica das doenças, assistimos, aqui e ali, inclusive, de pessoas esclarecidas, especulações, aparentemente, descabidas: "adoeci porque tive uma vida errada", "essa moléstia se instalou porque fui desonesto", "sou o culpado pela doença dos meus entes queridos". Interessante que mesmo que o médico venha a esclarecer as reais razões do adoecimento, ainda sim, silenciosamente, o doente carrega a ideia de que o "pecado" ou uma "má conduta" o aniquilou e vem se revelar  nos momentos mais desesperados do adoecimento. 

 Um ou outro médico diz, desapontado, que, no que diz respeito ao  adoecimento, o pensamento humano atual é  semelhante ao  da Idade Média.  Pegunto: avançamos? Se respondermos sensatamente, sim, se emocionalmente, não. Se somos muitos mais afetivos que efetivos, então, no momento do adoecer, as maldições mais arcaicas reaparecem, assim como apareciam com nitidez para nossos ancestrais mais primitivos.

Essas formas malditas - ou seja, de pensar doença como maldição -  faz parte da vida psíquica humana, e suponho, é a forma predominante. São os desejos arcaicos humanos que estão em jogo. Os desejos geralmente tendem a entrar em rota de colisão com os pensamentos morais e, nesse choque surgem, ainda na poeira, as doenças, que nos freia e nos faz refletir. A doença aparece-nos para impedir ou para "comunicar"  nossos oráculos. A doença  vem para repensar a vida e, sob  a forma de masoquismo moral,  sobrevalorar o adoecer como penitência, uma forma de condenação dura e inflexível, que, do mesmo modo que na Idade Média, poderá nos levar à morte. 

Na dialética dos "malditos", os sujeitos amaldiçoados não só são os doentes, seus cuidadores,  podem, em razão de mecanismos reparatórios, se julgarem igualmente pecadores e condenados a expiar seus males, convivendo com o sofrimento dentro dos hospitais - Na Idade Média, os pecadores eram condenados a trabalhos voluntários nos leprosários (a lepra representa bem impedimentos dos desejos arcaicos. O pecado envolve o desejo da "carne", antes  erótico, se torne, no leprosário, repulsivo).


Mas de onde vem tanta culpa para tanta penitência. O ser humano é movido pela suas transgressões e por suas culpas, está entre o desejo e o seu impedimento.  Há, contudo, um detalhe:  as transgressões não são tão "transgressoras", tampouco se conhece o crime que levou a tanta  culpa. O pensamento humano  provém de fantasias primitivas  de crianças que  viveram não apenas contos de fadas. A mente humana constituí-se de crenças elaboradas por uma mitologia pessoal, fantasias mitológicas que divide o ser entre o bem e o mal e que, desse modo, são passíveis das punições, onde o sujeitos são julgados e condenados à doença e ao desamparo -  A doença talvez seja uma das maiores experiencias do desamparo.

Marcos Creder

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