segunda-feira, 3 de novembro de 2014

DIÁRIO DE AULA - CLÍNICA





Dificuldades para se relacionar, oscilações de humor, impulsividade, sentimentos crônicos de vazio, dificuldade em controlar a raiva chegando a mesma à fúria, são manifestações sintomáticas relacionadas ao Transtorno de Personalidade Borderline, também conhecido como Transtorno de Personalidade Limítrofe. A história do termo borderline em psiquiatria vem do final do século XIX quando o psiquiatra inglês Hughes assim definiu pacientes que passavam a vida oscilando entre a sanidade e a loucura. Stern, em 1938, denominava tais pessoa como "hemorrágicas emocionais", devido a característica de estarem quase sempre feridas ou magoadas emocionalmente. Termos como "esquizofrenia marginal" e "esquizofrenia pseudoneurótica" chegaram a ser utilizados associativamente. Embora muitas vezes possam ser confundidos com esquizofrenia ou bipolaridade, os transtornos borderlines variam em duração e intensidade das emoções.
Otto Kernberg formula psicanaliticamente o conceito de Organização Borderline de Personalidade, cuja estrutura de personalidade apresenta mecanismos de defesa primitivos com preservação da capacidade de Teste de Realidade. Atualmente, embora ainda predomine a ideia de que o desenvolvimento do Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) tenha a ver com fatores da história de vida do indivíduo, alguns estudos parecem apontar para uma certa predisposição biológica, tais como anormalidade do metabolismo da serotonina e desordens neurológicas. Seja lá como for, o paciente borderline está cada vez mais presente nos consultórios e ambientes clínicos de saúde mental. Talvez isto esteja ocorrendo não porque haja mais borderlines na humanidade, mas sim porque estamos melhor compreendendo e enxergando o adoecer borderline. 
Não se trata de uma psicopatologia clara e simples, chagando as pessoas com tal transtorno serem chamadas de "pacientes difíceis", principalmente por apresentarem percepções empobrecidas e contraditórias do outros e de sua incapacidade de mostrar-se à alguém. Embora do ponto de vista egóico suas perturbações não cheguem ao nível do psicótico, têm sérias limitações para usufruir as opções emocionais frente aos estímulos do cotidiano. Seu limiar de tolerância à frustração é bastante baixo e entram em curto-circuito agressivo fácil e bruscamente. A tendência à adição é alta e possuem pouca persistência nas coisas, sendo a sua vida uma constante descontinuidade. Todavia, apesar da refratariedade ao tratamento psicoterápico, tais pessoas podem se beneficiar significativamente de uma atenção cuidadosa e firme de uma relação terapêutica. 
Os limites do setting psicoterápico têm que ser claros e bem definidos já no início do processo, devendo o terapeuta ficar sempre alerta e vigil às manifestações resistenciais do paciente. Não são casos de indicação para psicoterapia de curto tempo de duração, devido as suas fragilidades egóicas evidentes. A motivação para a mudança pode até existir desde o início, contudo ela é bastante baseada em pensamentos mágicos, idealizantes e imediatistas. A construção de uma boa aliança terapêutica é um longo processo que requer paciência, trato e manejo por parte do profissional. 
Além de enfocar constantemente a aliança terapêutica (muitas vezes frágil e passível de inúmeros ataques), o principal foco de trabalho é o desenvolvimento das capacidades e funções egóicas atrofiadas (ampliação do Ego), mediante aumento da mentalização de experiências emocionais. O fortalecimento da capacidade reflexiva é fundamental ao êxito terapêutico, devido tal capacidade encontrar-se inibida ou carente de desenvolvimento em personalidade border. Entenda-se aqui mentalização como capacidade de compreender os comportamentos e sentimentos pessoais e dos outros. Trata-se de focar a percepção do paciente em sua própria mente, assim como pensar a dos outros, levando-o a descobrir seus estados mentais associados a seus sentimentos e condutas, e como estes influenciam suas respostas, assim como as respostas de quem ele se relaciona. Neste sentido a atenção predominante não é voltada ao comportamento em si, mas sim aos estados mentais subjacentes. O objetivo não é promover insight, mas promover a curiosidade do paciente a respeito dos motivos causadores de suas atitudes, bem como considerar alternativas comportamentais outras. O processo de mentalização, assim, ajuda a pessoa borderline a separar seus sentimentos e pensamentos dos sentimentos e pensamentos dos demais que a rodeiam. Em outras palavras, o exercício da mentalização não deixa de ser uma postura psicopedagógica do terapeuta em relação ao seu cliente, dentro de um contexto e suporte clínico.
Um outro aspecto característico da abordagem psicoterápica é a menor ênfase na associação livre, visto a desorganização e labilidade egóica do paciente, evitando, desse modo, uma sobrecarga de material a ser trabalho clinicamente pelo mesmo, afinal o seu discurso não é pautado em uma fala livre, porém desorganizada. Sintetizar, clarificar, confrontar e esclarecer são intervenções bastante utilizadas neste manejo clínico. Já a utilização das intervenções interpretativas por parte do psicoterapeuta visam o aqui-agora. A interpretação não tem como alvo conflitos internos inconscientes, porém os estados contraditórios do Ego consciente do paciente (confrontação). O conflito não é entre consciente e inconsciente, entre superficial e profundo, e sim entre o que o Ego percebe e processa e o que o Ego não percebe e portanto não elabora. Lembrar que uma das principais características da estrutura borderline é exatamente que o individuo tem dificuldade em dar significado as suas experiências emocionais vulcânicas. 
Inevitável, ao lidar com TPB, é o fenômeno transferencial e seu correlato: a contratransferência. Ataques ao vínculos são frequentes, inclusive em formas de desvalorização da terapia e do profissional. É necessário que o terapeuta esteja preparado para tais ataques e tenha tolerância a agressividade a ele dirigida, assim como tolerância (continência) a lidar com ansiedade (sua e do seu paciente). A transferência negativa é, acima de tudo, uma forma border de se comunicar e de se relacionar. Quanto mais o terapeuta assim compreender mais viável será o manejo utilizado com vistas a preservação e sobrevivência do vínculo terapêutico. Como diz Winnicott, o terapeuta não deve negar em si o ódio contratransferencial, transformando-o assim em uma compreensão consciente e discernível de seus sentimentos de resposta. A respeito do tema sugerimos conhecer o capítulo XV ("O ódio na contratransferência"), contido no livro "Da Pediatria à Psicanálise" de Winnicott, editora Imago. 
Como o essencial é focar nos afetos (mundo interno) e não nos comportamentos (mundo externo) o foco do terapeuta é no estado mental atual dele (paciente). E sendo assim, o terapeuta há de se estar constantemente se perguntando "o que está se passando na mente do paciente agora?". Intervenções do tipo "por que você acha que ele disse/fez isso?" são frequentemente utilizadas. Busca-se, também, uma nova perspetiva no lidar com as experiências e eventos da vida. Em termos de interpretações transferenciais as mesmas devem ser curtas e simples, centradas no afeto que permeia a relação do paciente com o terapeuta no aqui-agora da sessão. Atentar ao fato de que são pessoas com fracas leituras introspectivas de suas próprias subjetividades, razão pela qual, portanto, trata-se sobre os sentimentos emergentes e não os inconscientes. 


Pelo acima exposto, a complexidade do tratamento psicoterápico frente ao paciente borderline é ampla, o que requer uma compreensão mais aprofundada da temática e experiência e segurança no manejo. Como o espaço aqui presente é curto e ligeiro, remeto o leitor(a) a complementar com um texto anteriormente publicado aqui no blog (http://literalmente-literalmente.blogspot.com.br/2013/11/psicoterapia-do-paciente-borderline.html), assim como oriento aprofundar o estudo visitando os seguintes links:

http://www.scielo.br/pdf/ptp/v26n4/16
http://www.uricer.edu.br/new/site/pdfs/perspectiva/128_143.pdf
file:///C:/Users/Joaquim/Downloads/0c96051c71048c9c64000000.pdf
https://www.youtube.com/watch?v=UxTHw5GqyHY

Joaquim Cesário de Mello

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