segunda-feira, 17 de novembro de 2014

DIÁRIO DE AULA - CLÍNICA




O dicionário é cheio de palavras inusuais, que não temos o hábito de utilizá-las e até mesmo sequer conhecemos da sua existência. Anancástico é uma delas. Significa indivíduo que se preocupa de forma excessiva com detalhes e regras, e costuma a ser perfeccionista. Anancástico tem somo sinônimo termos como caprichoso, meticuloso, detalhista. Em termos de personalidade anancástico corresponde às características obsessivo-compulsivas da conduta e pensamento de uma pessoa, também chamado de personalidade obsessivo-compulsiva (POC).

Segundo nossos atuais manuais diagnóstico o Transtorno de Personalidade Obsessiva-Compulsiva (TPOC) tem como característica essencial a preocupação com organização, perfeccionismo e controle mental e interpessoal, às custas da flexibilidade, abertura e eficiência. Este padrão começa no início da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos. Escrupulosidade, obstinação, rigidez excessiva, pedantismo e constantes sentimentos e ideações de dúvida complementam o quadro clínico. Frequentemente são pessoas que não aceitam que as outras pessoas não pensem ou ajam como elas, assim como seu perfeccionismo acaba atrapalhando o cumprimento de suas tarefas. 

Estima-se que cerca de 1% da população geral apresente TPOC, sendo que na clínica esse número cresce para cerca de até 10%. Mais uma vez as causas provocadoras de organizações de personalidade assim definidas é possivelmente multifatorial, com predominâncias genéticas e/ou ambientais, visto ser recorrente em situações familiares. Suas raízes - tratando-se de personalidade - remontam ao passado, mais precisamente à infância. Diferente do Transtorno Obsessivo-Compulsivo, comumente conhecido como TOC (que tem forte influência bioquímica, a personalidade obsessiva-compulsiva é uma maneira de ser do sujeito. Enquanto o TOC é egodistônico, a POC é egosintônica. 


No tocante a psicoterapia, tomemos emprestado de Liberman descrições como "pessoas lógicas" e "pacientes narrativos" para entender que indivíduos com TPOC apresentam discursos carteseanos, racionais e ruminantemente intelectuais. Lidar com sentimentos e afetos não é nada fácil para pessoas com personalidade obsessivas. O paciente pode passar sessões inteiras relatando situações vividas do presente ou do passado, porém com pouca ou nenhum emocionalidade aparente. Divagações e ruminações intelectivas são uma espécie de "cortina de fumaça" que contribuem para mascarar ao outro e, principalmente, a si mesmo os sentimentos pertinentes. Gabbard, inclusive, diz que tal discurso cheio de palavras e esvaziado de afetos podem servir como uma "nuvem anestésica" que faz os outros adormecerem. O psicoterapeuta deve tomar bastante cuidado em relação a tais divagações, pois elas levam o discurso a fugir do tema e perder o fio da meada. Como ainda diz Gabbard (PSIQUIATRIA PSICODINÂMICA NA PRÁTICA CLÍNICA) o padrão divagante leva o paciente a se distanciar, inclusive, do tema da sessão. 

O olhar pelo viés psicanalítico e a aplicação de uma abordagem psicoterápica de influência igualmente psicanalítica proporcionam boas respostas em pessoas com tais transtornos de personalidade. Quando aqui falamos de psicoterapia de influência psicanalítica leia-se dirigida ao "insight". Embora, em princípio, tenhamos uma refratariedade pela predominância do discurso divagativo e racionalizante, a psicoterapia dirigida ao insight proporciona melhoras significativas no tocante ao funcionamento interpessoal do paciente.


A aptidão das pessoas com TPOC de serem defensivas esconde/revela o medo inconsciente de entrar em contato com componentes afetivos e impulsivos (desejos) de sua mente tão contraladoramente isolante dos sentimentos subjacentes (discurso latente). É comum que o paciente veja o terapeuta como uma figura desafiadora em relação a sua onisciência, rejeitando assim a tomada de nova consciência sobre questões que até então ele se achava proprietário de todo o conhecimento a respeito (controle intelectual obsessivo).


Óbvio que ao lidarmos com uma personalidade obsessiva estamos lidando com um Superego bastante exigente em termos de Ego Ideal e Ideal de Ego. Neste sentindo estamos na órbita não de um Superego pós-edipiano, mas sim de um Superego em suas raízes narcisistas. Modificar a correlação de forças internas entre Ego e Superego é, portanto, subjetivamente o grande objetivo psicoterápico, isto é, que o Ego Real possa usufruir de sua condição humana (frágil, imperfeita e falha) sem com isto ser cobrado e oprimido por não corresponder um idealização superegóica. Para se conseguir tais objetivos acima, faz-se necessário que  tenha como estratégia principal - nos dizeres de Gabbard - "atravessar a cortina de fumaça das palavras e ir diretamente aos sentimentos".
Tratando-se de um transtorno de personalidade, com rigidez ideacional e atitudinal, o trabalho psicoterápico requer um longo processo pela frente. Não é fácil, sabemos, mudar o "jeito de ser", principalmente quando o "jeito de ser" é um enorme e enrijecido "jeitão de ser". 

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