quarta-feira, 11 de junho de 2014

VALE A PENA VER DE NOVO


PARA ALÉM DOS ARREDORES DE MIM

(originariamente publicado em 24/02/2012)

   


       Sou mais vasto do que sei quem sou. Eu sei. Além das cercanias em que me encontro encolhido habita um Joaquim bem maior e mais amplo do que todo o somatório de minhas familiaridades. Meus horizontes visíveis são minhas cercas. Mas como posso saber quem sou se não sei quem sou após as muradas que vejo quando me vejo? Serei, como diz Pessoa, sempre aquele que não nasceu para isso? Serei somente aquele que só tinha potencialidades e qualidades? Ou serei como um Vladimir ou um Estragon que nada mais tendo a fazer da vida ou na vida vivem a esperar um Godot que nunca chega? Ou serei ainda sempre um homem adiado, uma promessa que nunca se realiza, uma inquietude perene e quieta por debaixo dos contornos de minha máscara? Será que em minha lápide nada mais será escrito senão as datas em que nasci e morri? São tantas as desculpas que crio para continuar a não fazer o que até agora não fiz. Minha mendicância é vivida de sonhos onde neles sou o inverso de mim.

                Quando deixarei de sentir saudades de quem não fui? Acomodei-me confortável a esta metade de mim. A estrada que percorro não tem piso de tijolos amarelos - mas para onde ela me leva, se até agora só consigo chegar aos limites de minhas redondezas? Devo ser alguém mais e além de minhas periferias. A estrada em que ando andando não foi feita por mim e nem para mim. Então, por que nela prossigo? O poeta sevilhano Antônio Machado já versava que “não há caminho, o caminho se faz no caminhar”.
                Samuel Beckett em seu texto teatral Happy Days compõe um longo monólogo onde a personagem Winnie encontra-se enterrada até a metade de seu corpo. O tiquetaquear de um relógio marca a passagem do tempo e a hora de dormir e a hora de acordar. E Winnie repetidamente diz dia após dia: “Ah, bem, seja como for, é o que sempre digo, foi um dia feliz apesar de tudo, outro dia feliz”. E aos poucos, com o passar dos dias cênicos, Winnie vai se soterrando até o pescoço. Sim, vive-se assim: de um aguardar infindo e de uma esperança que não se conclui.
                Não me basta mais o que já sei de mim, pois de mim já sei demais. Quero-me além dos arrabaldes e após os subúrbios. Não sou tão mínimo assim para existir uma existência só de “murmúrios e grunhidos do berço até o túmulo”. Sou como aquele personagem do poema Tabacaria de Fernando Pessoa, pois não sou nada, não posso querer ser nada, pois também trago em mim todos os sonhos do mundo. 
             Sou e estou como sempre fui e estive: como a ave enjaulada do poema que escrevi quando tinha bem menos aniversários do que trago agora (...Empinou o bico/com inútil arrogância/agitando as penas/como se fosse feliz./Olhou o mundo/que flutua por detrás da janela,/abriu as asas/um tanto desacostumado/e num último arrebatamento/chocou-se entre as grades./Resignado,/recolheu-se ao seu canto habitual/e fechando as asas e os olhos/sonhou grandes voos.). Mas, não quero isto mais para mim. Quero ir adiante. Passar das cercas e me aprofundar inteiro. O somatório das nossas larguras e alturas não são nem metade de um terço de um décimo de nossas profundidades. Somos uma enorme vastidão para dentro. Do lado de lá de nós, de cada um de nós, reside quase um infinito, que toda uma existência de séculos seria insuficiente para explorar por completo.               

          O universo da alma humana não é menor do que o universo físico. Porém, emergir de si não é fácil ao humano, pois é necessário ir além das grades e das cercas impalpáveis, porém sensíveis. Os tijolos que edificam o muro que nos aprisiona não são feitos de barro ou argila, mas de medos, vergonhas, receios, culpas e pudores. O cineasta russo Andrei Tarkovski em seu filme Stalker, por exemplo, nos oferece uma história cuja ideia central gira em uma odisseia pela busca da cura dos medos e das inquietações pulsionais. A história se passa em uma região onde houvera caído um meteorito e que não é permitido por forças militares se entrar lá. Corre o boato que quem chegar perto de onde caiu o meteorito poderá realizar todos seus desejos. Uma pequena expedição de dois homens guiados por um nativo humilde da região consegue furar o bloqueio. Mas também corre a lenda que para se chegar à zona do meteorito é necessário antes ultrapassar várias armadilhas e perigos. O filme nos conduz lentamente por entre armadilhas e perigos que nunca acontecem. Nada acontece. Nem mesmo a realização plena dos desejos.
                 O transcender das cercanias nos amplia para dentro. Mas é árduo, sempre é, o longo e interminável caminho entre quem sou, quem gostaria de ser e quem eu posso ser. Para empreender tal infinda jornada é necessário coragem pessoal para renunciar ao mundinho em que habito. e muito mais do que coragem, pois, como afirma o psicanalista Hanz Kohut, as ambições nos impulsionam e os ideais nos puxam. Uma vez cruzada a porteira, que separa a alma que sou da alma que posso ser não há mais retorno ou regresso. É como disse certa vez o poeta chileno Pablo Neruda: "quem volta jamais partiu"

                  Quando daquela porta passar, quando as cercas ficarem às minhas costas, não mais serei o mesmo. Não posso mais ser o mesmo. E lá chegando, pois depois dos muros sempre se chega em algum lugar, encontrarei outra porta e outras cercas que também devo ultrapassar até a próxima porta e novas cercas. Nunca nos livraremos das cercas e de suas portas, contudo agora ou mais adiante tenho mais espaço no curral para caminhar - e ainda posso ampliar. O ampliar termina somente quando eu findar.
                E porque  ainda não findo é que devo me exceder e e me suplantar. E seguir em frente e continuar... Até o dia em que meus fantasmas se vestirão de luto por mim.

Joaquim Cesário de Mello
            




               

               
                

Um comentário:

Andressa Costa disse...

Lindo texto Joaquim! Sua sensibilidade cada vez mais aguçada, lindo demais! Me lembrou um texto de uma peça de Aderval, que dizia: "Quem sou eu de tantos eus que fui? Sou todos eles e sou eu só, não sou nenhum, cada um foi ele até a véspera do dia em que um pariu o outro que ele não tinha dentro de si, se não como vaga possibilidade..."