domingo, 22 de junho de 2014

Os quadros da Melancolia

Os autores de psicopatologia, psicanalítica ou psiquiátrica, costumam valorizar mais o discurso que a imagem, a escuta que a fisionomia do sujeito. em outras áreas da medicina, de maneira geral, os autores fazem justamente o contrário, e em muitas situações, médicos costumam esquecer o que seus pacientes falam, dando maior atenção a aparência do patológico do fenômeno da doença física.

Os antigos médicos de tradição hipocrática costumavam descrever o semblante, a expressão facial do sujeito, dando-lhe nomes as “fácies”. Fácies mitral aos portadores da doença cardíaca estenose mitral,  fácies renal ao semblante edemaciado dos paciente renais crônicos, fácies "leonina" as marcas e cicatrizes decorrente da hanseníase, fácies hipocráticas - uma mórbida homenagem ao pai da medicina - em que o sujeito se mostra caquético à beira da morte.

Os livros da área "psi" não tem imagens ou retratos.Há exista desconsideração da imagem em detrimento da fala - a fala é fundamental, mas não se deve esquecer que a fala carrega uma fisionomia, um rosto, uma expressão, e muitas vezes os seus hiatos são  preenchidos  com a mímica, com o gesto. Na psicopatologia clássica descreve com algum detalhe caricaturas do sofrimento psíquico, mesmo assim, tem um caráter meramente descritivo-objetivo, enfim, classificatório e tipológico.  Houve uma tendência, no final do século XIX  e início do século XX, guiado por Lombroso e Kretschmer,  que tentou relacionar personalidade a tipos físicos.  Magros, obesos, altos ou baixos poderiam, por assim dizer, determinar um modo de ser. Obviamente, que hoje estes estudos são datados, mas  ainda assim, restam descrições de  traços discretos da expressão facial, que toma um ou outro "sinal", entre as terminologias médicas. Classifica-se o "ômega depressivo", a "perplexidade catatônica", "la belle  indiferénce histérica", a "apatia psicótica". Esses descrições guardam algum valor. Um deprimido, por exemplo, nem sempre pode ser confundido com um apático, apesar de, eventualmente, tratarmos as duas palavras, depressão e apatia, como sinônimos. A imagem objetiva é valorizada objetiva, no entanto, se pudéssemos como os pintores e fotógrafos acrescentar à descrição a imagem subjetiva...

Freud sabia bem disso: era preciso ver para interpretar -  o frente a frente, o olhar demorado e silencioso era-lhe fundamental para captação dos sentimentos…" olhar e captação silenciosa do sentir" tem algo a ver com Freud?  Esquisito, não? Antes precisamos nos perguntar de que "Freud" estamos falando. Certamente não  é do Sigmund, pai da psicanálise, mas do Lucian Freud, o famoso pintor londrino que foi um dos mais brilhantes artistas da segunda metade do século XX. Há algum parentesco com o outro Freud? Sim. O psicanalista é avó de Lucian Freud. Lucian nada tem haver com a psicanálise, salvo o parentesco sangüíneo e a habilidade de descrever (ou retratar) o sofrimento humano. Quem vê pela primeira vez uma tela de Lucian Freud, tende a sentir repulsa. Seu realismo é devastador. São retratos de pessoas no cotidiano domésticos, muitas vezes despidas, sem qualquer embelezamento que as tornem suaves. São retratos crus, sem sorrisos, como se os retratados fossem pego de surpresa.


Um dos retratos, que se destaca, são os de sua mãe, Lucie Brasch, retratada nos meses que sucederam a morte do marido Enst - filho de Sigmund e pai de Lucian- nos anos 1970. O relato que se tem é de que a Sra. Lucie entrou em profunda melancolia. As pintura The painter’s Mother Resting I e II. podem ilustrar a captura estética do estado melancólico e do envelhecimento como comenta  o crítico e biógrafo de Lucian, Geordie Greig:


(...) Os quadros de Freud  vão muito além do biográfico. Ele nos visita as vicissitudes da idade. Ela (Lucie) é uma velha arquetípicas. Sua calma, passividade e aceitação, os braços para cima, as mãos no travesseiro, em rendição, tudo mostra sua vulnerabilidade. 


Em entrevista a Greig, Lucian Freud disse que pintar envolve dor  - dor (pain) na língua inglesa se assemelha  a palavra  pintura (paint) - e que o corpo humano é um tema profundo,  e que por essa razão, necessita de minuciosa observação.  O aspecto psicológico de seus quadros, ao contrário do método do avô,  era retirado da palavra e colocado no olhar. A palavra parece-lhe um artefato: “O tema deve ser mantido sob uma observação rigorosíssima: se isso for feito, noite e dia, o tema acabará por revelar tudo” e conclui, “o quadro, para nos comover,   não deve jamais nos lembrar a vida, mas deve adquirir uma vida própria, exatamente para refletir a vida”. Ao ser abordado sobre qual ingrediente essencial à sua arte, responde ironicamente: a tinta.


Avô e neto pensam diferente em relação à compreensão do humano? Sim, se considerarmos o método. Mas, de algum modo, os dois "Freuds" convergem ao revelarem aquilo que está à nossa frente e que não percebemos: a fala que diz mais que a palavra e a imagem que mostra bem mais que o retrato.

Marcos Creder

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