domingo, 1 de junho de 2014

MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO






Somos feitos mais de silêncios do que de ruídos e barulhos. Apenas uma pequena parte de nós fala, palavreia, verbaliza e evoca. Esquecer faz parte do processo de armazenamento da memória, este patrimônio arquitetônico que constitui a noção de eu de cada um de nós. Como dizia o poeta Fernando Pessoa "esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos".
Enquanto o psiquismo habita no cérebro, a noção de eu habita no psiquismo. Esta consciência da consciência, isto é, esta consciência que temos de nós mesmos como agente do pensamento, da ação e conhecimento da realidade, se torna a pessoa que sabemos existir dentro de nosso corpo: a nossa autoconsciência. É da natureza humana - sua principal característica - a capacidade que possuímos de nos reconhecer como indivíduos únicos, dotados de história, presente e expectativas quanto ao futuro. Sem lembranças não teríamos uma biografia, sem uma biografia não teríamos uma identidade e sem uma identidade não seríamos o que cada um de nós somos. Isto tudo nos dá uma personalidade e um sentido de unicidade.
Todavia confundimos quem somos com o que pensamos que somos. Somos mais amplos e mais profundos do que nos imaginamos. A consciência do si é uma parte de nossas essências ou, como diz Freud, "não somos apenas o que pensamos ser. Somos mais: somos também o que lembramos e aquilo que nos esquecemos; somos as palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos sem querer". Muitos processos mentais se processam sem a participação direta ou intervenção da nossa consciência. E não falamos somente em termos psicanalíticos, visto que a neurociência atual também perscruta - com suas técnicas modernas de mapeamento cerebral -  o lado oculto do psiquismo humano. A mente reconhecidamente é um mundo muito maior e inexplorado que a consciência, sua parte superficial e visível. A ponta do iceberg.
Muito antes de Freud e da Psicanálise já desconfiávamos que somos dotados de vontades, desejos e lembranças que escapam à consciência. Podemos estar aprisionados a um corpo, a uma matéria orgânica e deteriorável, mas a alma não é corpórea. É algo em que mim se move e me anima ou desanima. A alma é sutil, não é concreta. Ela é por natureza sensível e plurifacetária, e é encoberta por máscaras que conjugadas chamamos de pessoa. Entendo os versos do poeta português Pedro Mexia quando decanta que "a identidade é um equívoco/para camuflar o coração".
Jung diferenciava Ego de Self. O Ego (Eu) é o sujeito da consciência, enquanto que o Self é o sujeito do todo, isto é, o Self inclui tanto o Ego quanto os aspectos não conscientes do Ego. Para Jung a parte da mente que se apresenta e confronta com o mundo externo chamou de Persona. É o caráter que assumimos e que por seu meio nos relacionamos com as pessoas e com a sociedade em que vivemos. A Persona tem também a utilidade de nos proteger contra características internas nossas que queremos esconder. Desse modo experiências rejeitadas psicologicamente pela consciência, sejam elas lembranças, desejos ou tendências, compõe a nossa Sombra.
Freud "sacou" muito bem a questão ao utilizar termos como repressão e recalque. Sem querer adentrar detalhadamente em seus mecanismos, digamos que a mente humana é escapista, isto é, busca evitar ou fugir daquilo que lhe gerar sofrimento, desconforto ou dor psíquica. O que psicologicamente incomoda o psiquismo ele se defende desalojando o conteúdo para uma espécie de área intrapsíquica, retirando-o assim da consciência sobre os mesmos. O reprimido e/ou o recalcado é, portanto, reprimido e/ou recalcado para o inconsciente.
Por quantas coisas passamos e por quantas coisas aprendemos e que agora fazem parte de nós e nos esquecemos que um dia aprendemos e que um dia as vivenciamos. O romancista ensaísta francês André Maurois já dizia que "cultura é o que fica depois de se esquecer o que foi aprendido". E não é porque pouco ou quase nada nos lembramos de tantas coisas experimentadas, aprendidas e vividas, que deixamos de nos comportar sob a influência delas todas. Talvez devamos nos atentar para o que alerta Elias Canetti (Nobel de Literatura em 1981), "tudo aquilo que esquecemos pede ajuda em sonhos".
Não é porque a memória seja o perfume da alma, como afirmava George Sand (pseudônimo da romancista francesa Amadine Dupin), que a alma não possua lá seus outros cheiros e odores. Muito do que nos escapa à consciência permanece guardada na memória. Nossa memória não é feita apenas de palavras, afinal o nosso psiquismo mesmo não é de todo verbal, pelo contrário, há muito em nós que não chega à superfície representacional de nossas mentes. Os neurocientista contemporâneos chama isto de memória implícita ou memória procedural (não-declarativa). Afinal, é o que fazemos quando dirigimos um carro praticamente em "piloto automático psíquico". Se no início aprender a dirigir um carro era um esforço de atenção quanto aos pedais, as marchas, ao freio e à embreagem; agora não mais - fazemos isto tão quase naturalmente, ao ponto de podermos até nos distrair um pouco olhando as mulheres bonitas andando nas calçadas.
No espaço psíquico que chamamos memória habitam lembranças simbólicas e não simbólicas, recordações verbalizáveis e não verbalizáveis, recentes e arcaicas. A matéria que constitui o nosso mundo interno é feita também de fantasias e sentimentos que nunca vieram à luz de nossa consciência, ou se vieram foram como que apagadas de nossa atenção vigil. Alguns denominam de "memória em sensação", isto é, percepções, sensações, imagens, objetos e sentimentos pré-verbais. Não é, pois, porque o irrepresentável não figure em nossa consciência que ele não coexista em nosso psiquismo de maneira inconsciente. Christopher Bollas, em seu livro A Sombra do Objeto, escreve que o conhecido não pensado é "como uma experiência recorrente do ser – um conhecimento mais existencial, em oposição ao representativo”. Há, pois, outras maneiras de se armazenar no aparelho psíquico que não seja só pela via representacional.  
Impulsos ou desejos que não lograram se tornarem ato podem permanecer eternizados a impelir silenciosamente nossas ações em buscam de satisfação e realização. As motivações humanas podem se ocultar nos mais simples e banais dos atos. Não há descontinuidade na vida psíquica - observa Freud. Os eventos mentais não surgem de repente do nada; há sempre, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, alguma intencionalidade, por mais paradoxal que ela possa ser. Fazemos o que fazemos, pensamos o que pensamos, sentimos o que sentimos, têm sua história que encontram raízes em antecedentes muitas vezes desconhecidos pelo Eu consciente da pessoa. 
O mundo secreto do inconsciente não é apenas objeto de estudo e exploração da Psicanálise em geral, mas igualmente interessa a neurociência moderna, como dissemos acima. Pesquisa realizada pela emissora BBC junto a especialistas de ponta das principais universidades inglesas, americanas e canadenses obteve a opinião de que cerebralmente o consciente é estimado em cerca de 5%. Os restantes 95% dos processos cerebrais são desconhecidos pela parte consciente do psiquismo humano. Inconscientemente na vida cotidiana de uma pessoa seu cérebro processa uma imensidão de circuitos neurais que se encarregam das tarefas do dia-a-dia, deixando livre a parte consciente da mente para focalizar e operacionalizar situações e problemas a enfrentar no aqui-agora. 
A ideia de que lembranças reprimidas ou desejos e impulsos desagradáveis ou egodistônicos poder ser base de muitos desajustamentos atuais é ponto de partida de diversas abordagens psicoterápicas. Coisas retidas no inconsciente da mente podem funcionar como naquela letra da música Revelação de Fagner: "Quando a gente tenta/de toda maneira dele se guardar/sentimento ilhado, morto e amordaçado/volta a incomodar". 



A importância de manter viva a memória, de não esquecer do que nos foi importante e significativo, é pano de fundo do filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. A história é uma verdadeira e fascinante jornada psiquismo adentro do personagem Joel Barish, interpretado seriamente por Jim Carrey. Amar e lembrar o que foi vivido, sejam recordações boas ou não, é a grande lição desse excelente roteiro escrito pelo profícuo Charles Kaufman. O próprio título do filme é retirado de um poema, Eloisa To Abelard, de Alexander Pope (poeta inglês do século XVII), cujos versos são: "feliz o destino da inocente vestal/Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida/Brilho eterno de uma mente sem lembranças". PS: vestal = mulher casta, virgem, donzela. Vide trailer e assista o filme:

O aforismo grego "Conheça-te a ti mesmo" nos remete à importância de conhecer internamente o que nos é oculto, o que podemos ser e nem sabemos que podemos, o que influencia os nossos pensamentos, sentimentos e ações. Só assim podemos ultrapassar que achamos que somos ou quem os outros acham que somos e sermos quem realmente somos. O autoconhecimento nos leva à igualmente conhecer melhor o mundo em que vivemos, e assim sermos mais autênticos, mais realizados e mais equilibrados. Quem de si teme seus demônios, teme também seus deuses.


Joaquim Cesário de Mello

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