domingo, 15 de junho de 2014

TEMPERATURAS & TEMPERAMENTOS








Em relação a si dizia Clarice Lispector: "no meu temperamento tem um pouco de pimenta: não é todo mundo que gosta... Nem todo mundo que aguenta". Freud também se referida na seguinte frase: "sou, por temperamento, nada mais que um conquistador - um aventureiro, em outras palavras - com toda curiosidade, ousadia e tenacidade características desse tipo de homem". Aqui e acolá se fala do temperamento de si e de alguém. Seja como cordial, seja como explosivo. Seja como inquieto, seja como acomodado ou relaxado. Afinal, o que é mesmo temperamento?
O temperamento faz parte da personalidade de uma pessoa. É um aspecto inerente a ela e está fortemente relacionado com as emoções e os humores. Para Hipócrates, o "pai" da medicina, há quatro tipos de temperamentos, a saber: o sanguíneo, o colérico, o fleumático e o melancólico. O pano de fundo da maioria dos nossos comportamentos é o temperamento. Se algo nos é inato em termos de personalidade este algo é o temperamento. Ele é a nossa herança psicogenética dos nossos pais e avós. Através, pois, da interação entre as disposições hereditárias e as experiências vivenciais com o ambiente vai se consolidando uma personalidade na alma humana. Neste interjogo de forças o temperamento representa as contribuições biológicas do ser humano como ser bio-psico-social que é.
Na formação da arquitetura da alma o temperamento é o terreno inicial onde se edificará a pessoa humana. Dentro da perspectiva estrutural da mente humana Freud foi um dos pioneiros a destacar a importância dos primeiros anos infantis como formadores dos alicerces do caráter básico de um indivíduo. É como ele diz: "as pulsões sexuais atravessam um complicado curso de desenvolvimento e só em seu final o primado da zona genital é atingido". 


Mais modernamente estudos aprofundados e longitudinais sobre o tema da índole temperamental, como os dos médicos Alexander Thomas e Stella Chess, conceituam o componente estilístico do temperamento, isto é, o "como" do comportamento. Para eles o temperamento é um atributo psicológico que influencia o ajustamento do ser em formação com o ambiente externo. No aprofundamento de suas pesquisas identificaram nove categorias de temperamento: a ritmicidade das funções biológicas, nível de atividade, limite sensorial, qualidade predominante do humor e intensidade de suas expressões, aproximação ou afastamento frente a estímulos novos, distração e persistência. A combinação de tais categorias, por sua vez, resultam em três constelações temperamentais que são a criança de temperamento fácil, de temperamento difícil ou de aquecimento (receptividade) lento. Aquelas de temperamento difícil são mais refratárias a mudanças, precisando pois de mais tempo para adaptar-se e tendem a ter acessos de raiva quando frustradas. As de temperamento fácil são mais adaptativas às mudanças, enquanto as de receptividade lenta são mais relutantes inicialmente, porém lentamento se adaptam e suas reações negativas são menos intensas que as da criança difícil.
Desde cedo, em torno dos três meses de idade, os seres humanos já apresentam diferenças entre si. Alguns bebês são calmos, outros inquietos. Uns são distraídos e outros mais atentos. Enquanto uns são facilmente acalmados pelo acalento, outros nem tanto. O humor varia de bebê para bebê. Já na mais tenra idade o ser humano não é algo completamente passivo, visto reagir a estímulos externos com comportamentos primaria e geneticamente determinados. Com o tempo o temperamento vai se enlaçando com aquisições do meio, da educação, das experiências e dos esforços pessoais, formando o jeito de ser, sentir e reagir de cada um. Quanto a isto as disposições inatas vão melhor se moldando com sua interação com o ambiente em que se vive. Ou como escreve Flávio Fortes D'Andrea, em seu livro Desenvolvimento da Personalidade, ao reconhecer o temperamento como a "tendência herdada do indivíduo para reagir ao meio de maneira peculiar". Em outras palavras, são as nossas inclinações e sensibilidades frente aos estímulos, sejam eles externos ou internos. Uma maneira própria de reagir primariamente. 
Sabe aquele cara espontaneamente alegre, que Hipócrates chamava de sanguíneo, ou aquele enfezado e de "cabeça quente" (colérico), ou aquele outro que é meio lento e sem muita emoção (fleumático), pois é são seus estilos, isto é, seus temperamentos. Assim como também pessoas que são naturalmente tristes ou sonhadoras (melancólico). O temperamento, assim, portanto, é a estrutura básica dominante do humor e do comportamento.  É o clima, a temperatura, em que vive a alma humana e nele se desenvolve.
Contudo, não é porque o temperamento nos é inato que não possamos aprender a conviver com ele de maneira volitiva e até mesmo abrandá-lo. O temperamento pode até ser imutável, mas também pode ser administrável. Por isto se faz tão necessário nos conhecermos bem, principalmente se considerarmos que o temperamento tem por característica ser não-volitivo e não-intencional. O autoconhecimento é uma espécie de alfabetização emocional. Dessa maneira o sujeito mais alfabetizado emocionalmente sobre si mesmo é um sujeito que percebe melhor suas atitudes e busca colocar o calor das suas emoções mais adequadamente às inúmeras situações de vida. Evidente que o esforço resultante do controle dos nossos temperamento são recompensados com um desenvolvimento mais positivo da nossa personalidade. 
A transição na primeira infância de temperamento em personalidade, a partir da segunda infância em diante, passa pelo controle que a pessoa, que se vai construindo dentro do psiquismo antes puramente impetuoso e impulsivamente infantil, tem sobre tais demandas. A regulação das emoções brutas, intempestivas e não-volitivas (temperamento), em termos acadêmicos, chama-se de "desenvolvimento do self emocional". Tal regulação nos faz capaz de tanto controlar estados emocionais quanto o comportamento relacionado ao mesmo. Quanto mais capaz de regular e modular nossa emocionalidade mais fácil fica de experimentar e explorarmos os ambiente sociais em que vivemos. Quem consegue um bom controle de suas emoções mais resiliente aos estresses se transforma. O Eu que habita a alma humana tem como principal função mediar o temperamento com as demandas ambientais. Há na Bíblia uma passagem (Provérbios 16:32) que diz: "o homem paciente vale mais que um general que venceu muitas batalhas, porque é muito mais difícil controlar as próprias emoções do que conquistar uma cidade". 
Aprender a controlar um temperamento colérico, explosivo, estilo "pavio curto" - por exemplo - passa por compreender a dinâmica de sua ansiedade, muitas vezes provocada pela necessidade de controlar tudo e todos, o que naturalmente vai-lhe originado um acumular de frustrações e irritações que acabam por resultar em estouros emocionais intempestivos e inadequados ao estímulo raivoso atual (a gota d'água que transborda um copo já cheio). É necessário, nestes casos, desenvolver internamente um diálogo de si consigo mesmo, evitando assim que pequenas provocações gerem grandes explosões furiosas. Uma espécie de dialética psíquica entre pensamentos raivosos e pensamento anti-raivosos. Neste sentido uma experiência psicoterápica eficaz em muito contribui para o incremento do que chamamos "cisão terapêutica do Ego". Através dela constrói-se internamente um duplo Ego dialogal, ou seja, um Ego que experimenta e vivencia suas emoções e um Ego que as auto-observa. Assim conseguindo pode se alcançar o mesmo que o escritor francês Flaubert atingiu quando disse que "tinha essa inexprimível beleza da alegria, do entusiamos, do êxito, e que nada mais é que a harmonia do temperamento com as circunstâncias" (grifos nossos).


Joaquim Cesário de Mello

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