sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

VALE A PENA VER DE NOVO


Às "Mal Traçadas Linhas" – uma Homenagem à Tinta e ao Papel



Andei lendo recentemente o livro “O Gesto Espontâneo”, uma coletânea de diversas cartas de D.W. Winnicott endereçadas a diversos profissionais, teóricos e amigos, e pude constatar que muitas teorias, pelo menos em psicanálise, não são teorias por si só, mas biografias. Muito se vê no modus vivendi, na implicação subjetiva do teórico, traços de sua postura pessoal-profissional repercutir na construção teórica. Essas correspondências tem, por assim dizer, valor semelhante, e às vezes melhor, que os textos bem construídos preparados para um público mais heterogêneo. Esse tema que fazem teorias biográficas merece uma discussão à parte – uma longa discussão que deixarei para outra ocasião.
Ao ler o prefácio do organizador, contudo, vi que essas cartas só foram possíveis de serem publicadas graças à viúva de Winnicott que obsessivamente catalogou todas essas correspondências - o papel dos companheiros e familiares é de fundamental importância para a multiplicação ou para o esquecimento desses “famosos”. Penso que o grande trabalho do biógrafo, especialmente o biógrafo ou historiador do século XX, é tentar organizar esse sótão, esse baú, essas gavetas em que todos de algum modo deixam alguns vestígios.  Poderíamos falar assim do historiador do século XXI? Das biografias que serão escritas no futuro? O mundo atual parece ter se complicado nesse aspecto, principalmente, porque as informações, registros, manuscritos, perderam a materialidade do papel e da tinta.  Mesmo que as viúvas, viúvos, filhos ou amigos tenham empenho em querer cooperar com o biógrafo ou historiador, terão muito mais dificuldades em ter acesso ao mundo privado do teórico, em razão de fazer parte de um mundo virtual. Essas “preciosas” contribuições, muitas vezes, estarão protegidas por senhas e poderão ficar perdidas para sempre.   Eventualmente um hacker, que geralmente não tem nenhum interesse em propagar a obra de um autor, poderá “expor” detalhes sórdidos da biografia de alguns desses “famosos”.

Acho que muitos autores que tiveram seus textos inéditos publicados depois de mortos, não publicaram em vida porque não quiseram, porque não acharam que seriam publicáveis e acho que deveríamos respeitar as possíveis falhas desses trabalhos. Muitos criticam, por exemplo,  o “Projeto para uma Psicologia Científica” de Freud sem levar em consideração que o próprio autor nunca tivera interesse em publicar esse longo manuscrito. Mas há outras situações em que a publicação não ocorreu em vida por pura fatalidade, como é o caso de Albert Camus e de Dante Alighieri. Os últimos dias de vida de Dante, em especial, renderiam bons roteiros de filmes épicos. Se não fosse o papel e a tinta dificilmente teríamos conhecido por inteiro “A (Divina) Comédia”. De acordo com Boccaccio, seu primeiro biografo, A terceira parte do livro (“O Paraíso”) estava incompleta, faltavam os últimos 13 cantos e familiares sequer tinham certeza de que tinham sido escritos. Foi proposto na ocasião que seus filhos terminassem a obra baseado no conhecimento que tinha do pai e na própria cadência da obra.  Oito meses após a morte de Dante os cantos foram então achados num vão de parede, escondidos numa pilha de manuscritos, o papel e a tinta, mofados.
A Divina Comédia - Paraiso 02
Umberto Eco disse em entrevista para o texto “Não contem com o fim do livro”, que o livro talvez tenha sido uma das maiores invenções da humanidade e, desse modo, assim como a invenção da roda, dificilmente vai se extinguir, contrariando o que preconizam alguns escritores da atualidade. O livro é prático, é de fácil manuseio e não depende de parafernálias tecnológicas para se ter acesso.  “Eletrônicos duram dez anos, livros duram cinco séculos” comenta ao questionar os vários formatos que mudaram no transcorrer dos últimos trinta anos – disquetes, cds, pendrives etc. Seguindo esse raciocínio, caso ocorresse um blackout energético ou tecnológico no futuro, seria mais fácil ter acesso a um texto de um escritor Medieval que de um escritor de meados do século XXI. Nem tudo, portanto, estaria perdido se pensar que o pesquisador do futuro poderia resgatar manuscritos de Cervantes, Shakespeare e o próprio Dante. Mas que valor terá estes artistas no futuro?

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No mesmo tempo que lia Winnicott, relia também outro artigo: “Sobre a Transitoriedade”. Esse texto sumário de Freud trata da ideia – para muitos, angustiante – da finitude da vida humana, do belo, da arte. Tudo será findado, mas para Freud:

 “Mesmo que venha um tempo, em que os quadros e as estátuas, que hoje admiramos, sejam destruídos, ou surja uma espécie humana, depois da nossa, que não mais compreenda as obras de nossos poetas e pensadores, ou até mesmo uma época geológica em que se extinga tudo o que é vivo sobre a terra, o valor de todas essas coisas belas e perfeitas seria determinado apenas pela sua significação para nossa vida afetiva”

Desse modo, quando se redescobriu as partituras da música de Bach no século XIX por Schumann e outros entusiastas, ou quando alguém intercedeu para que Franz Kafka não ateasse fogo em toda sua obra, ou ainda, quando Giovanni Boccaccio publicou a “Divina Comédia”, não se estava reeditando ou salvando o passado apenas, mas o presente. Há muitos papéis avulsos contando nossa história e que ainda não foram descobertos.

Originariamente publicado em 14/04/2013

Marcos Creder
                                            

   

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