Na inocência inicial dos
nossos impulsos e instintos não há pecados ou interditos. O mundo externo, a concretude
das coisas e o social ainda nos são de todo desconhecidos. Progressivamente
vamos nascendo para o real e suas realidades. Gradualmente a névoa que nos
encobre os objetos e as pessoas vão se dissipando. Não estamos sós. Sequer somos
onipotentes e autossuficientes. Alguém cuida de nós e de nossas mais básicas
necessidades. Dependemos e nos desenvolvemos. Este outro que se descortina
frente às retinas de nossas almas é enorme e gigante. Poderoso. É dele ou dela
que nos vem o leite, o aconchego, as carícias e os afagos. É dele ou dela que
nos vem a o calor e a continuidade da vida. Sem ele ou ela seríamos
desprotegidos e, passo a passo, aprendemos que sucumbiríamos. Sem ele ou ela
nossas existências não durariam mais que alguns instantes de choros e agitos.
Esses
são, então, os tempos iniciais do psiquismo de um ser humano: narcísicos, hedonistas,
egocêntricos e anômicos (ausência de norma), cuja conduta é ditada pelas
necessidades biológicas. O egoísmo característico da primeira infância vai aos
poucos dando lugar aos limites morais impostos (heteronomia) pelos cuidadores. Não
que as crianças pequenas entendam as regras, mas temem os castigos advindos da
autoridade que lhes é superior. O processo educacional ou socializante de uma
criança é sempre um processo permeado de nãos. E os nãos são seguidos, se
descumpridos, por coersões e punições. Com o tempo a criança aprende e/ou
internaliza os nãos de fora. Haverá um instante em que ela mesma dirá não a si
própria, sem a necessária presença de uma autoridade externa. A mente agora adquire a qualidade psíquica de ser autoridade de si e de seus impulsos e desejos.
O homem é um animal racional,
já diziam os antigos. O homem é um ser de desejos e de moral. Afirma Nietzsche
que “não há fenômenos morais, mas apenas
uma interpretação moral dos fenômenos”. As normas morais são fruto das
exigências sócio-culturais, que contribuem para regular as relações sociais.
Esta é a dimensão social da moral. Mas há uma outra, íntima e implícita: a moral
pessoal. Uma espécie de tribunal interior se estabelece, e avalia, julga, sentencia
e castiga a partir de dentro o que entende como certo ou errado. Porém, nem
sempre o que este imaginário tribunal julga como justo, é de fato justo para o
sujeito e para sua vida. Às vezes o indivíduo se condena por fantasiosos “crimes”
que sequer cometeu, por supostas infrações que não transgredem nada, e por
pecados que só existem no fundo ocultos de seus mais recônditos desejos.
Há
pessoas, portanto, que sentem culpas que não deviam, ou outras que se culpam de
culpas pequenas exageradamente. E haja expiações desnecessárias, sofrimentos
ingratos porque injustos, e punições extremas de quem só deveria receber perdão
e misericórdia. São sentimentos ruins e doridos, que nos machucam no silêncio
gritante de nossos interiores e que brota em nós como um ditador implacável e
que nos acusa de sermos “maus” só porque somos simplesmente humanos, tão
somente.
Entendo, assim, melhor as
duras palavras escritas pelo romancista sueco Stig Dagerman, em seu livro A
ILHA DOS CONDENADOS:
“A culpa é sentirmo-nos culpados, e não um resultado dos
crimes cometidos; o ser inocente é alegre, feliz, e não deixa, seja em que caso
for, que os acontecimentos perturbem a sua calma e a sua paz. É por isso que
considero que a justiça erra quando executa os menos em vez dos mais culpados,
quer dizer quando executa os criminosos e não aqueles que sentem que têm no
coração a culpa do mundo. Isso equivale a executar crianças por ações que
cometeram no escuro quando ignoravam tudo acerca do escuro e das reações que
provoca no funcionamento dos corpos. Uma vez que são culpados apenas os que se
sentem culpados, seria necessário suprimir a justiça distribuitiva de castigos
e substituí-la por uma justiça executora, porque ao fim de algum tempo aquele
que a culpa mortifica já só aspira a morrer, a morrer pelas faltas do mundo
como pelas suas próprias faltas, e pode sem a mínima hesitação, sim, sem a
menor angústia de morte, uma vez que nada tem a esperar agora que tocou
finalmente o fundo do mundo, pedir à justiça a sua pena de morte - e nunca
outra cabeça se curvará mais graciosamente do que a sua por baixo da guilhotina,
nunca colar algum terá acariciado a garganta de uma mulher com tanta delicadeza
como a da corda ao aflorar-lhe o pescoço”.
Nem toda Mea Culpa é verdadeiramente minha
culpa. Culpo-me às vezes por culpas que não são minhas. Se todos meus erros, se
todos meus defeitos, fizerem de mim um homem culpado, então sou tão culpado
quanto toda minha humanidade. Se digo e sei que errar é humano, então porque me
cobro e me castigo quando erro? A tragédia do ser humano não é a de não ter
nascido perfeito e sem falhas, mas sim querer ser perfeito e não ter falhas.
Ou
como versa a poeta portuguesa Isabel Gouveia:
“há vozes gritando
a
culpa que sinto
pesar-me
na alma,
há
ecos cavando
a dor
que pressinto
em
noites de calma...
. . .
Fiz mal? Como e onde?
E
quando? E quando?”
Joaquim Cesário de Mello
Um comentário:
Lendo esses textos parece que eu estou escutando Joaquim falando na sala de aula, aprendi muito com você. Parabéns Joaquim!!! Texto brilhante!!!1
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