domingo, 5 de janeiro de 2014

MEA CULPA, MEA MAXIMA CULPA

  





uma expressão popular que diz: "ninguém nasce vestido". Analogamente também podemos afirmar que ninguém nasce com o sentimento de culpa. A culpa é um afeto secundário, isto é, desenvolvido a partir de nossas relações sociais. Quando alguém se sente culpado é porque parece estar se sentindo indigno, mau, ruim, e por isto se repreende e carrega remorso. Como diz o Wikipédia da vida, o "sentimento de culpa é o sofrimento obtido após reavaliação de um comportamento passado tido como reprovável por si mesmo" (grifos nossos). Atentem para os grifos, pois a culpa de que estamos abordando não é aquela que vem de fora (um outro que nos acusa, que nos culpabiliza), mas sim de dentro, como um sofrimento que o psiquismo do sujeito faz a si mesmo por reprovação.
     O filósofo à época do Império Romano, Sêneca, que também era um intelectual do direito, já expressava que "a principal e mais grave punição para quem cometeu uma culpa está em sentir-se culpado", afinal falar em sentimento de culpa é falar em consciência moral. Mais do que somente uma consciência, em um psiquismo que ao longo do tempo foi contruindo em si uma moralidade pessoal.
Quem sente culpa sente culpa porque é honesto. Uma pessoa desonesta, uma pessoa psicopata, por exemplo, não sente culpa por determinado ato. Somente haverá de sentir, nem que seja uma mínima culpa, aquele que tem compromisso com sua moral e é sensível a ela. Não nascemos culpados simplesmente porque a “mente nua”, o psiquismo em seu estado mais puro, bruto e natural, não possui, ainda, qualquer moral. Somos, todos, primariamente amorais. O “pecado original” dos nossos primeiros antepassados, no psiquismo, ainda haverá de ser “descoberto”. 

    Na inocência inicial dos nossos impulsos e instintos não há pecados ou interditos. O mundo externo, a concretude das coisas e o social ainda nos são de todo desconhecidos. Progressivamente vamos nascendo para o real e suas realidades. Gradualmente a névoa que nos encobre os objetos e as pessoas vão se dissipando. Não estamos sós. Sequer somos onipotentes e autossuficientes. Alguém cuida de nós e de nossas mais básicas necessidades. Dependemos e nos desenvolvemos. Este outro que se descortina frente às retinas de nossas almas é enorme e gigante. Poderoso. É dele ou dela que nos vem o leite, o aconchego, as carícias e os afagos. É dele ou dela que nos vem a o calor e a continuidade da vida. Sem ele ou ela seríamos desprotegidos e, passo a passo, aprendemos que sucumbiríamos. Sem ele ou ela nossas existências não durariam mais que alguns instantes de choros e agitos. 

Esses são, então, os tempos iniciais do psiquismo de um ser humano: narcísicos, hedonistas, egocêntricos e anômicos (ausência de norma), cuja conduta é ditada pelas necessidades biológicas. O egoísmo característico da primeira infância vai aos poucos dando lugar aos limites morais impostos (heteronomia) pelos cuidadores. Não que as crianças pequenas entendam as regras, mas temem os castigos advindos da autoridade que lhes é superior. O processo educacional ou socializante de uma criança é sempre um processo permeado de nãos. E os nãos são seguidos, se descumpridos, por coersões e punições. Com o tempo a criança aprende e/ou internaliza os nãos de fora. Haverá um instante em que ela mesma dirá não a si própria, sem a necessária presença de uma autoridade externa.  A mente agora adquire a qualidade psíquica de ser autoridade de si e de seus impulsos e desejos. 
O homem é um animal racional, já diziam os antigos. O homem é um ser de desejos e de moral. Afirma Nietzsche que “não há fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral dos fenômenos”. As normas morais são fruto das exigências sócio-culturais, que contribuem para regular as relações sociais. Esta é a dimensão social da moral. Mas há uma outra, íntima e implícita: a moral pessoal. Uma espécie de tribunal interior se estabelece, e avalia, julga, sentencia e castiga a partir de dentro o que entende como certo ou errado. Porém, nem sempre o que este imaginário tribunal julga como justo, é de fato justo para o sujeito e para sua vida. Às vezes o indivíduo se condena por fantasiosos “crimes” que sequer cometeu, por supostas infrações que não transgredem nada, e por pecados que só existem no fundo ocultos de seus mais recônditos desejos. 

             pessoas, portanto, que sentem culpas que não deviam, ou outras que se culpam de culpas pequenas exageradamente. E haja expiações desnecessárias, sofrimentos ingratos porque injustos, e punições extremas de quem só deveria receber perdão e misericórdia. São sentimentos ruins e doridos, que nos machucam no silêncio gritante de nossos interiores e que brota em nós como um ditador implacável e que nos acusa de sermos “maus” só porque somos simplesmente humanos, tão somente. 
          Entendo, assim, melhor as duras palavras escritas pelo romancista sueco Stig Dagerman, em seu livro A ILHA DOS CONDENADOS:

“A culpa é sentirmo-nos culpados, e não um resultado dos crimes cometidos; o ser inocente é alegre, feliz, e não deixa, seja em que caso for, que os acontecimentos perturbem a sua calma e a sua paz. É por isso que considero que a justiça erra quando executa os menos em vez dos mais culpados, quer dizer quando executa os criminosos e não aqueles que sentem que têm no coração a culpa do mundo. Isso equivale a executar crianças por ações que cometeram no escuro quando ignoravam tudo acerca do escuro e das reações que provoca no funcionamento dos corpos. Uma vez que são culpados apenas os que se sentem culpados, seria necessário suprimir a justiça distribuitiva de castigos e substituí-la por uma justiça executora, porque ao fim de algum tempo aquele que a culpa mortifica já só aspira a morrer, a morrer pelas faltas do mundo como pelas suas próprias faltas, e pode sem a mínima hesitação, sim, sem a menor angústia de morte, uma vez que nada tem a esperar agora que tocou finalmente o fundo do mundo, pedir à justiça a sua pena de morte - e nunca outra cabeça se curvará mais graciosamente do que a sua por baixo da guilhotina, nunca colar algum terá acariciado a garganta de uma mulher com tanta delicadeza como a da corda ao aflorar-lhe o pescoço”. 

Nem toda Mea Culpa é verdadeiramente minha culpa. Culpo-me às vezes por culpas que não são minhas. Se todos meus erros, se todos meus defeitos, fizerem de mim um homem culpado, então sou tão culpado quanto toda minha humanidade. Se digo e sei que errar é humano, então porque me cobro e me castigo quando erro? A tragédia do ser humano não é a de não ter nascido perfeito e sem falhas, mas sim querer ser perfeito e não ter falhas.
                Ou como versa a poeta portuguesa Isabel Gouveia:

“há vozes gritando 
a culpa que sinto 
pesar-me na alma, 
há ecos cavando 
a dor que pressinto 
em noites de calma...
 . . .
 Fiz mal? Como e onde? 
E quando? E quando?”

Joaquim Cesário de Mello

Um comentário:

Anônimo disse...

Lendo esses textos parece que eu estou escutando Joaquim falando na sala de aula, aprendi muito com você. Parabéns Joaquim!!! Texto brilhante!!!1