domingo, 3 de março de 2013

VINGANÇA


Há algum tempo postei aqui no LiteralMente um artigo sobre  Medeia, do teatro de Eurípides, destacando o seu ato hediondo – assassinar os filhos para se vingar do marido que a havia abandonado. O ato de Medeia é repulsivo pois, além do bárbaro infanticídio,  a feiticeira  - como é chamada no texto - carece de arrependimento. O ato é fruto de vingança sem remorso. O que estava sendo vingado, afinal? A dor do abandono.  Na peça Gota D'Água de Chico Buarque, que se inspira nessa mesma Medeia,  destaca-se a justificativa de que o ato seria motivado por uma espécie de justiça íntima - a essência  da vingança - e  de uma vingança má. Pergunto: existem boas vinganças?


Lembro-me de filmes que eram, há mais de dez anos reprisados no Domingo Maior, tarde da noite, depois do “Fantástico”. Seus roteiros eram semelhantes. O personagem, um homem já maduro, tinha uma pessoa querida - a mulher ou  a filha - já no início do filme, brutalmente violentada.   Essa tragédia ditava o argumento do filme.   Começava, desse modo, uma implacável e planejada perseguição do herói que, sob uma névoa melancólica,  com objetivo de executar cada um dos assassinos com  minuciosa  crueldade. Os telespectadores, identificado pelo desejo vingança do herói, chegam ao  êxtase no momento em que as mortes chegam à êxito.  A vingança triunfa. 

O filme em razão do sucesso, replicou-se por diversos domingos, e dele, seguiram-se  continuações: “Desejo de Matar”, título em português para Death Wish, se desdobrou em Desejo de Matar  II, III, IV e V - talvez tenha mais - , todos protagonizado por  Charles Bronson. O leitmotiv desses e de outros filmes é trazer a vingança como uma forma de justiça, talvez a mais real  ou mais saborosa das justiças – Incontáveis filmes de ação trazem-na em suas tramas.

 Se o cinema e a literatura repetem o tema da vingança, que se mostra tão atraente ao público, devemos, então, concordar com a ética dos vingadores? Ou, pelo contrário, deveríamos seguir a frase de Confúcio: “antes de embarcar na vingança cave duas covas...?"


Um dos livros mais importantes da literatura traz no seu enredo, entre diversas reflexões, o tema da vingança, onde a alegoria do vingador e do vingado encontra-se perfeitamente representada. Acab (ou Ahab em algumas traduções), o personagem/capitão do navio baleeiro Pequod,  tem uma obstinação: o desejo de vingança por Moby Dick – o título do livro –, uma baleia gigantesca que o teria, em outra ocasião, mutilado e desfigurado.  O brilhante romance de Herman Melville narra sobre essa incansável jornada do capitão em busca do improvável justiçamento,  que termina por  levar ele e a tripulação à ruína. Tomado pela ira inominável à baleia, animal que sequer  conhecia o ódio ou a vingança, Acab sucumbe. 

O romance é narrado por Ismael, ajudante da tripulação. Ismael, um dos personagens mais famosos da literatura, pela sua riqueza narrativa, descreve o capitão:  “Acab se alimentava das patas sombrias de sua melancolia”.  Em outro trecho Starbuck (que ainda não era nome de cafeteria), outro dos integrantes da tripulação, tenta demovê-lo da implacável perseguição:  “Por que insistes em dar caça a esse hediondo cachalote? Vem comigo! Vamos embora dessas águas mortais! Vamos voltar para casa!” (...)“Ainda podemos desistir, mesmo hoje sendo o terceiro dia. Vê! Moby Dick não te procuras. És tu, tu, que loucamente o buscas!” . O romance segue o aforismo de Confúcio e descamba na conhecida tragédia.

 A vingança, na história, foi, de certo modo, codificada nas leis de talião, onde se poderia revidar com dano de igual, o dano original – “olho por olho, dente por dente”. Ainda hoje essa lei inspira a justiça em várias culturas, especialmente, no Oriente e Oriente Médio e, de maneira velada, no Ocidente - muitas vezes designa-se por “princípio de reciprocidade”. Se tomarmos como exemplo “Moby Dick” e Confúcio, a vingança terá nas suas entranhas um elogio à “justa violência” trazendo, contudo, nas entrelinhas um incômodo. Pois parecer haver algo no ato de vingança que se subtrai do sujeito.  Utilizando da frase de Bacon “a vingança é uma espécie de justiça selvagem”, acrescento que renunciar a esse ato seria mais humanamente justiceiro e civilizatório. 

O cristianismo talvez tenha sido uma das religiões que tenha de fato repensado, pelo menos em tese, o direito de vingança, com a seguinte passagem, atribuída à Cristo:

Tendes ouvido que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo: Não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te dá na face direita, volta-lhe também a outra; ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e quem te obriga a andar mil passos, vai com ele dois mil. Dá a quem te pede, e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes.»  ( Mateus 5:38-42)

Se nos detivermos aos aspectos psíquicos da vingança, saberemos que, muitas vezes, ela é inevitável, pois nela entra em jogo mecanismos arcaicos da vida infantil e da vida ancestral do processo civilizatório. Mas o seu custo é elevado. A vingança se alimenta do ódio, do ressentimento, reduz o outro à condição de coisa, distancia  outros afetos, ilude o sujeito com ideias maniqueístas, turva-se de fanatismo, e sem dar tempo à pluralidade, age, em geral, por impulso. Essa junção – agressão e impulsividade – forma uma aliança que tende a respingar no próprio vingador e, assim como Acab, o primeiro alvo do ato de vingança termina por ser criar um eterno ressentido.  Se não ocorre esse aparente respingo, resta-nos a implosão. Enfim, o remorso.


Marcos Creder

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