domingo, 30 de dezembro de 2012

A ADOLESCÊNCIA PINTADA DE VERMELHO: O CUTTING E A JUVENTUDE


               Nós que lidamos com adolescentes, e deles sabemos de suas intimidades e segredos, conhecemos os riscos e perigos a que eles estão submetidos. Um deles é o da automutilação que atinge algo em torno de um para cada cerca de nove/dez jovens. A automutilação é também conhecida e denominada por “cutting”, que em inglês significa “cortando”.
                As cicatrizes são marcas de momentos de angústia e tristeza descontados na pele. O fenômeno da automutilação é cada vez mais visível na adolescência, principalmente por ser uma etapa evolutiva na vida onde as emoções parecem se intensificar. As raivas, as ansiedades, as frustrações e as tristezas (dores internas) são sentimentos fortes demais ao jovem que ainda não consegue lidar bem com tais emoções e como que as troca pela dor física.
                Embora acima tenha dito ser a automutilação um fenômeno cada vez mais visível, o adolescente, na verdade, busca dissimulá-la. Os cortes geralmente são feitos em partes do corpo onde a roupa possa encobrir. Que a roupa cubra as marcas é uma coisa, mas o jovem não consegue ocultar é a mudança do comportamento. Meninas que adoravam usar blusas de alcinhas de repente passam a usar roupas de mangas compridas e de inverno em pleno calor de verão, por exemplo.
                O assunto é ainda pouco estudado e alguns até o consideram como sintoma de outros transtornos psíquicos, mas já existem propostas em classificá-la como uma doença específica. Neste sentido último, a automutilação é um transtorno relacionado ao autocontrole, ou seja, onde a pessoa não consegue conter seus impulsos e agride a si mesma com objetivo de aliviar desconfortos psíquicos.
                Os poucos estudos e pesquisas a respeito apontam que a automutilação é mais recorrente no sexo feminino, na faixa etária entre 15 e 24 anos. Dos que praticam a automutilação na transição entre a infância e a adulteza, cerca de 90% não continuam a prática ao se tornarem adultos, e menos de 1% dos que se mutilam não têm intenções suicidas. Os principais fatores de risco associados, entre outros, são a depressão e a existência de uma família pouco estruturada.
                Ferir-se se torna um vício que pinta a passagem da criança para o adulto de vermelho. O se machucar ou se cortar não visto por quem o faz como um problema, mas sim como uma espécie de “remédio” que lhe ajuda a aliviar a dor da alma. Embora sinta vergonha em expor as marcas e feridas autoprovocadas, isto não impede o jovem de se mutilar, afinal o alívio emocional proporcionado pela dor física é maior. Entre os ferimentos mais frequentes temos: cortar-se, beliscar-se, morder-se, furar-se, arranhar-se, queimar-se, cutucar feridas e arrancar os cabelos. Muitos são os objetos utilizados, tais como facas, giletes, tesouras, cacos de vidro, arame, estiletes, e vários outros objetos cortantes.
                A questão do viciar-se em se machucar tem a ver com as endorfinas liberadas no ato de se provocar dor física. Cortar-se, por exemplo, instiga a produção de adrenalina que, por sua vez, atenua a dor. As endorfinas opióides liberadas pelo cérebro e que estão associadas às sensações de bem-estar causadas pelo alívio da angústia e da tristeza. E como em toda raiz de um comportamento viciado, temos a presença de compulsão. O auto agressivo, que assim o faz sem manifesto desejo de chamar a atenção, sente dificuldades em controlar tal impulso e se torna um dependente de lâminas e objetos cortantes como se fosse um dependente de cocaína, álcool ou crack.
                A alma de um adolescente automutilador é uma alma automutilada. Como escreveu uma jovem de 18 anos: “eu queria manter cada corte em carne viva, a minha dor em eterna exposição”. Já há – e era inevitável que não houvesse – um termo acadêmico para o fenômeno em questão que é “traumatofilia”. E, embora não seja o desejo do jovem, a atração em se traumatizar, se machucar, leva o adolescente às proximidades da intimidade com a morte, mesmo que seu interesse seja o de projetar em seu corpo suas tensões emocionais como uma maneira de dominá-las melhor. É um verdadeiro extravasamento do espaço psíquico que transborda no corpo e deixa suas marcas e cicatrizes.
         Não consigo deixar de parafrasear um verso de uma letra musical de Chico Buarque (“as marcas do amor em nossos lençóis”) e escrever que o adolescente automutilador é aquele que deixa “as marcas dos sofrimentos em sua pele”.  Embora, ao modo alexitímico, há um grito surdo nisso tudo. Não deixa de ser uma maneira de tentar comunicar e expressar sua dor na ausência das palavras e na falta de quem lhe escute. Um falar escondido, mas que vai deixando pistas. É necessário quem as ache e quem possa buscar entender quem as escreve em forma de tatuagem que são as feridas em seu corpo.
                Estranho paradoxo este: na tentativa de cortar o sofrer se corta o corpo. Sim, há uma significativa diferença entre a dor (que é do corpo) e o sofrer (que é da alma). Embora ambas sejam aflições. A alma e o corpo do adolescente muitas vezes é objeto de dores e sofrimentos intensos (e o que não é intenso na adolescência?). Os conflitos e seus pesares se colam à pele por meio de ataques corporais. Sim, eles necessitam de ajuda. Necessitam serem ajudados a transitar por este estrito caminho cercado de abismos que é o caminho e o caminhar entre a infância e a maturidade. O adulto do amanhã está se consolidando na confusão de identidade e sentimentos que é a adolescência e seus adeuses.
                Renato Russo escreveu e compôs uma longa música chamada “Clarisse”. Ali ele diz: “E Clarisse está trancada no banheiro/E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete/Deitada no canto, seus tornozelos sangram/E a dor é menos do que parece/Quando ela se corte ela se esquece/Que é impossível ter na vida calma e força/Viver em dor o que ninguém entende/Tentar ser forte a todo e a cada amanhecer... Eu sou um pássaro/Me trancam na gaiola/Mas um dia eu consigo existir/E vou voar pelo caminho mais bonito/Clarisse só tem catorze anos" Pois é, esta letra tem mais de quinze anos, e o número de adolescente se automutilando tem aumentado. Urge estudar e compreender mais o que se passa. Nossos futuros adultos irão agradecer.
                Em primeiro lugar é necessário entender que no “cutting” ou automutilação não há um comportamento masoquista (não o prazer do sofrer que se busca, mas o prazer do alívio da dor psíquica) e nem que é uma atitude tresloucada de chamar a atenção, afinal, lembremos, a pessoa tem vergonha de suas cicatrizes que as faz sozinha e que tenta esconder. O adolescente automutilador muitas vezes tem dificuldades de se expressar emocionalmente. Esta própria dificuldade expressiva em muito contribui a priori para o futuro comportamento auto-agressivo. Daí se vê a importância de possibilitar um espaço interpessoal para que o jovem possa falar de si, inclusive e principalmente de suas automutilações. Para tal é necessário, portanto, não ter uma postura judicativa frente ao transtorno, mas sim compreensiva e tolerante, embora se busque a minimização das autoagressões e até mesmo a sua superação e definitiva extinção. Tudo isto, evidente, em um clima de acolhimento, sustentação (holding) e calor humano.
                Lembremos, mais uma vez, que o cutting é uma maneira de linguagem não verbal cujo meio comunicacional é o corpo. Mesmo que não tão intencionalmente assim, o adolescente ao se escarificar (do latim scarificare, que significa fazer uma incisão superficial na pele) faz com isso um acting out (passagem ao ato) onde o significado de seus conflitos internos escapa à capacidade simbolizante da própria mente. O ato automutilador não deixa de ser uma espécie de apelo silente cuja demanda necessita encontrar o receptor da mensagem. O ódio, a raiva, o medo, a insegurança, a tristeza, o ciúme, a inveja, a angústia e outros afetos precisam achar seu espaço psíquico na construção da autoestima do adolescente em formação. Quanto mais se pode falar sobre si e seus sentimentos, menos se necessita do escape da atuação automutilante. Quanto mais o sujeito do ato se transforma em sujeito dos seus afetos, mais colorida será a adolescência, com todas as suas cores e menos somente rubra.

Joaquim Cesário de Mello

2 comentários:

rotina criativa disse...

Não poderia descrever melhor. Texto incrível e que relata uma realidade muito vigente e mais próxima do que imaginamos. O filme "Aos treze" demonstra esse fenômeno muito bem e a música de Legião urbana é fascinante. Realmente esse é um assunto pouco discutido apesar de ser bem conhecido. Parece não despertar muita atenção, e se assim for notamos que a comunicação e talvez o apelo que o jovem automutilador lança esta sendo não só silencioso, mas silenciado.

rotina criativa disse...

Ah, e a fala da jovem de 18 anos referida a cima diz respeito a uma música de Leoni "50 receitas", caso não conheça.