terça-feira, 23 de junho de 2020

O ENIGMA DA ESFINGE

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Na mitologia grega temos a figura da esfinge (monstro alado com um corpo misto de mulher e leão) que afligia a cidade de Tebas. Quem ousasse enfrentá-la tinha que decifrar um enigma que desafiadoramente ela lançava no famoso bordão "decifra-me ou te devoro". Reza a lenda, ou a peça de Sófocles, que foi Édipo quem elucidou o enigma "que criatura tem quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à tarde?". A resposta hoje conhecida por todos é: o homem.
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Édipo pode ter resolvido o segredo da esfinge, mas herdamos desde os tempos imemoriais a pergunta "o que é o homem?", ou mais precisamente "o que é a mente humana?". Se o homem é a resposta à questão da esfinge, nós é quem somos de fato um enigma à esfinge.

Qual a essência da psiquê humana, portanto? Psiquê esta que nos faz diferentes dos demais animais, embora não desfaça de nós a nossa própria animalidade. O homo sapiens há muito tenta se entender. Heráclito que viveu entre 535 a.C. e 475 a.C não era lá otimista quando afirmou "tu não encontrarás os confins da alma, caminhes o quanto caminhares, tão profunda é a sua razão". Porém, teimemos. De que é feita a mente humana? Quais as suas argamassas? Shakespeare dizia que "somos feitos da mesma matéria que nossos sonhos". Somos, pois, tecidos da mesma maneira que os sonhos? Se tirassem de mim tudo que me distrai e me camufla, veria em mim a minha nua alma? O que é que estava em nosso psiquismo antes de nele chagarmos, isto é, antes de formar-se nele a consciência de um eu? Até onde sabemos é que a mente, distintamente do cérebro, não extensão, isto é, não ocupa um lugar determinado em que podemos medi-la em termos de comprimento, largura ou altura. A mente sequer é material: não pode ser tocada, cheirada ou apalpada. A mente diretamente não pode ser vista ou observada, exceto pela introspecção. Mas isso não retira de mim as minhas inquietações. O que é a mente e de que ela é feita?
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Os dualista creem que a mente é uma substância diversa do corpo. Já os monistas acreditam que mente e corpo são uma coisa só. Enquanto que para os epifenomenalistas a mente é algo subserviente ao corpo. Há quem reduz o corpo à mente (imaterialismo) e há quem reduza a mente ao corpo (materialistas), Há tantos que não pode haver tantos. Quem está com a verdade? Há aqui alguma verdade a ser descoberta? E não houver, perco tempo por isso com isso? Não sei o que é mais difícil: se encontrar o começo ou encontrar o fim? Recorro, então, ao poeta Fernando Pessoa em seu heterônimo Alberto Caeiro: "sou um guardador de rebanhos./O rebanho é os meus pensamentos/e os meus pensamentos são todos sensações". Serei isto, pois?: um amontoado de sensações que se fizeram pensamentos? Desta vez o poeta não me ajuda, desassossega-me. 
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Ah!, essa obscura natureza da mente humana. Ajudaria se trocássemos mente por estados mentais? Ou que tal fenômenos mentais? Continuaremos generalista, não é. Claro que falar, por exemplo, de processos mentais nos leva mais para perto de algo científico. Parece que estamos a falar de cognição, memória, aprendizagem, percepção... É, nossa mente tem mesmo dessas coisas, mas também tem os processos emotivos e as alterações corporais/fisiológicas. A partir de vários processos mentais (cognitivos, emotivos, conativos e fisiológicos) a mente se efetua. Lembro-me agora do escritor português Vergílio Ferreira quando escreveu que "todo animal tem uma alma que é à medida de si. Só o homem a tem infinitamente maior. E o seu drama, desde sempre, é o de querer preenchê-la".
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Toda psiquê, toda mente humana, tem seus labirintos. Há, dentro de cada homem ou mulher, criança ou adulto, uma florestas de pensamentos, desejos, fantasias, sonhos e sentimentos. Dentro de cada um de nós habita uma enorme barulhada de vozes, como se cada um fosse feito de várias vozes e eus. No emaranhado de que somos feitos às vezes somos complicados, confusos, tumultuados e dissonantes. Como já disse o poeta Ferreira Gullar, "uma parte de mim é multidão/outra parte estranheza e solidão". Ah!, decididamente não é fácil sermos uma pessoa, visto sermos contraditórios, diversos e paradoxais. O que se passa na mente humana muitas vezes se processa em termos de antíteses que se altercam. Às vezes parecemos tão realistas, outras vezes tão oníricos. De quando em quando mostramo-nos maduros e adultos, mas em outras ocasiões tão infantos e imaturos. Isto o que somos, meu caros leitor(a): um misto de incoerência, um amálgama de definições e indefinições. A mente humana ainda vozeia "decifra-me ou te devoro".
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A alma humana vive indissociavelmente ligada ao corpo. Na base de sua natureza reside a fisiologia e os instintos. Estes últimos são por excelência forças motivadoras do comportamento do ser humano e dos processos psíquicos subjacentes. Porém somos mais do que nosso substrato. Para os gregos da Antiguidade somos constituídos em nossa base de dois impulsos: um apolíneo e outro dionisíaco. O modelo de entendermos a alma com o tripartite não vem de Freud, mas de Platão. Platão desenvolve no diálogo Fedro o mito do Cocheiro, onde a psiquê é vista como um cocheiro (razão/eu) que conduz dois cavalos alados: um negro (elemento dionisíaco) e outro branco (elemento apolíneo). O componente dionisíaco da mente é o nosso lado bestial e o apolíneo o que há de divino em nós. Apolo é o deus da serenidade e da ordem;já Dionísio é o deus dos prazeres desmedidos e do desregramento. Vivemos em meio a um conflito do tipo dia e noite, ordem  e caos, superficialidade e profundidade.

"Há um espetáculo mais solene do que o mar, é o céu; e há outro mais solene do que o céu, o interior da alma", já escreveu Victor Hugo. Há em cada um mais almas do que uma, afinal - como já versou Fernando Pessoa - "sou somente o lugar/onde se sente ou pensa". Plural, enigmática, diversa, contraditória, clara e obscura, mística e esfíngica: eis a alma que em parte se revela e em outra se encoberta.

Joaquim Cesário de Mello

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