domingo, 29 de maio de 2016

Mais Uma...

O recente ocorrido com a modelo Ana Hickmann traz com frequência a mesma demanda de perguntas e de temores: se o agente do ato  era mentalmente são, e se, sendo insano -  ou “louco” - , esse tipo de insanidade  levaria com mais frequência a atos violentos. Não me aprofundei  nem me aprofundarei neste episódio específico, mas posso afirmar  que foi um ato criminoso passional e, crimes passionais, não nos faltam no dia-a-dia, no entanto, quando, como nesse caso, ocorrem dentro da perspectiva delirante, são mais midiáticos.  O que dá  fama é o aspecto bizarro do acontecimento -  o bizarro é, sem dúvida, mais noticioso. Em cima dessas bizarrices surgem os preconceitos ou as caricaturas dos “loucos” desvairados. Aqui, cabe uma reflexão: a proximidade entre as palavras loucura e paixão deixa os seus estudiosos a arrancar cabelos, pois como bem afirmou Blaise Pascal, “o amor tem razões que a própria razão desconhece”. Pois, por que tentamos, infrutiferamente,  encontrar essa racionalidade em território tao movediço? talvez, as teorias do amor sejam mais uma dessas ilusões necessárias.

Por muito tempo se pensou a loucura como fruto da irracionalidade; de um lado estavam as mentes “sãs” ou racionais  e, do outro, os sujeitos insanos irracionais. Contudo, se partirmos da ideia de indivíduo  “normal” como plenamente racional, chegaremos a um  sujeito inexistente e impossível - diria até desagradável - e, essa simplória conclusão, nos levaria a famosa frase de Caetano Veloso, que, “de perto ninguém é normal”. Se não existem parâmetros seguros de normalidade, se somos uma aldeia habitada pela irascível irracionalidade, como funcionaria, enfim,  a mente dos loucos. Respondo:  diferente, mas não tão diferente  da alma dos pretensiosos normais. Tudo que se sabe a respeito dos quadros de psicose é ainda superficial, assim como tudo que se refere ao psiquismo supostamente normal.

Embora que aqui não vamos dar destaque,  não  devemos  desmerecer as importantes teorias neuroquímicas e neuropsiquiátricas que, do mesmo modo que as hipóteses psíquicas, tem importantes esboços  teóricos  da mente humana.   Vejamos alguns acontecimentos:  Há cerca de vinte anos, uma conhecida atriz brasileira anunciava seu casamento com já o consagrado ator George Clooney, chegou, inclusive, a esmiuçar os detalhes da cerimônia em programa de televisão.   Dias depois, talvez meses, o equívoco se revelaria, Clooney sequer havia conhecido essa “senhora” e estranhara ideia tão estapafúrdia. Anos antes, em 1993, um psicanalista  seria assassinado por sua paciente que acreditava estabelecer relações íntimas de forma telepática e, ainda, contra a sua vontade. Na mesma época,  o namorado também de uma celebridade cometeu suicídio, por acreditar que sua mulher teria sido infundadamente  infiel e se envolvera com vários parceiros de profissão. Sob a alegação de que "o mundo é sujo" comete o ato na frente da atriz. Todos esses casos envolvem paixão e, eventualmente, ideação delirante mas nem sempre são considerados "loucos de carteirinha", alguns nunca se trataram ou sequer tiveram alguma consulta com especialista, e mais uma vez, ganharam fama por conta da bizarrice do ato. 

 O psiquiatra  Gaëtan Gatian de Clérambault  em meados do século XX sintetizou um curioso quadro de comportamento delirante, do qual nomeou como delírio erotomaníaco - posteriormente chamado de síndrome de Clérambault. Nesse quadro, o sujeito, em sua maioria do gênero feminino,  se via envolvido amorosa e “secretamente” com pessoas de destaque ou de evidência públicas. Essa relação segue os mesmos padrões superlativos da paixão  - não tão diferente dos apaixonados normais, mais intensa, contudo. As únicas e marcantes diferenças estão no fato de que é uma construção inteiramente, e, toma o cotidiano do seu acometido, como se tudo que ocorresse no seu entorno, fossem sinais, senhas ou  codificações que apontam para a essa bizarra relação passional. Na maioria das vezes, as pessoas acometidas por síndrome erotomaníaca são pessoas solitárias e convivem, ou conviviam,  de forma reservada com sua paixão proibida. Falei conviviam, porque, hoje, em se tratando da realidade de redes sociais, o espaço de reserva, o espaço privado, vem se reduzindo e se submetendo as exposições públicas. No passado o alvo da paixão poderia receber um ou outro telegrama, ou correspondência de correiros anônimas, hoje  é  importunado a toda hora, por todo tipo de pessoa, inclusive, por esses reservados delirantes - Uso a palavra "reservado" porque, nesse caso, corresponde a maioria.  

O mundo delirante não tem o mesmo compromisso com a realidade que o não delirante. Se vivemos conflitos, sofremos com nossas renúncias, nossas feridas narcísicas, com o nosso orgulho, e na síntese de suas soluções,  o  pensamento delirante suplanta esses desacordos,   reportando ao mundo da infância de todos nós. Cria-se, como naquele tempo, tramas  de ideias sobrevaloradas que só o tempo e a experiência vão dilapidando. Se quando criança acreditamos que um homem ou uma mulher adultos, sejam eles professores, parentes ou amigos dos mais velhos, correspondiam a nossa admiração com paixão,  por muito tempo esperneamos ao imaginar que toda essa história partiu única e exclusivamente de nosso desejo e de nossas fantasias - no pensamento delirante, a fantasia ganha o “status” de realidade e, mais, sustentam provisoriamente parte da vida mental. Frente à desgraça ou a ruína de cada um, o delirante não encontra escoras que suportem seus impasses pessoais, a sustentação se dá pela recusa da realidade. O amor delirante tenta dar um novo sentido, embora que com muito sofrimento, as questões vivenciais do seus acometidos - um bom exemplo disso está no formidável texto de Gogól, na Rússia do século XIX," O Diário de um Louco". contudo, não precisamos ir tao longe no tempo nem no espaço. Folheando o livro de poemas Meio-dia Eterno do escritor pernambucano Austro-Costa, deparo-me com vestígios de Clérambault no seguinte soneto:

Mais Uma...

A que me escreve agora é Margarida
Margarida Isuré... Quem será ela?
Grafologicamente, o que revela
é que vai terminar doida varrida

É um caso grave e triste, o "caso" dela.
Lunática perfeita... Convencida 
de que só ela é o meu amor, na vida...
"Tua serei, ou morrerei donzela!;;;"

A letra dela, a da segunda carta
é a mesma letra da que assina Marta...
Maluquice? Freudismo? Ou brincadeira?

Sei lá... coisas, talvez de vitalina,
de solteirona que quer ser menina
e que ainda acaba na Tamarineira...

MARCOS CREDER


Um comentário:

Unknown disse...

Infelizmente a sociedade não sabe é nem se enterneça do que é o louco nem do seu sofrimento, esconde debaixo do tapete que resulta na pratica imaginaria para os normais. Mas será que somos normais?pois não tratamos nesse caso dos anormais.