domingo, 5 de junho de 2016

O BOM CIDADÃO

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Foi assistindo ao filme The Eichmann Show que então vi-me envolto em reflexões que agora aqui exporei. Eichmann foi um burocrata de alta patente nazista responsável pela logística do extermínio de milhões de judeus, ciganos e outras classes de pessoas por ocasião do que comumente se chamou de Solução Final (Holocausto). Ao término de Segunda Guerra Mundial (1945) conseguiu fugir da Alemanha e refugiou-se clandestinamente na Argentina durante anos até ser pego (sequestrado) em 1960 pelo serviço secreto de Israel (Mossad). Seu julgamento, por crimes de guerra e contra à humanidade, ocorreu em Israel em 1961, no que foi considerado "o julgamento do século". Em sua defesa alegou ser apenas um mero servidor público cumpridor de ordens. Justificando que seu único pecado era ser obediente, apresentou-se como um homem cuja principal virtude e honra era a lealdade, tendo ele apenas seguido a lei do regime de sua época.
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O julgamento de Eichmann teve cobertura jornalística internacional. Uma das correspondentes presentes ao julgamento foi a pensadora e filósofa judia Hannah Arendt que representou a revista americana The New Yorker. Arendt já era mundialmente conhecida por um dos mais importantes livros políticos do século XX, As Origens do Totalitarismo. No ato de noticiar e analisar o julgamento ela percebeu e teorizou o que nomeou de "Banalidade do Mal", termo este diretamente associado à faculdade mental humana de julgar. Sim, Eichmann era um burocrata bem comportado e cumpridor de seus deveres e obrigações, decididamente um bom cidadão dentro da ordem política do Estado alemão nazista. Isto foi o que foi mais assustador reconhecer, segundo Arendt: Eichmann não era um monstro, porém apenas uma pessoa comum tanto como tantas outras pessoas. Escreveu ela: "O problema de Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais". Para a filósofa a trivialidade da violência e do mal ocupa o vazio deixado pelo pensamento. Não refletir, não pensar e nem se responsabilizar, apenas obedecer e cumprir ordens sem moralmente sequer contestá-las, abre-se a brecha de se praticar o mal sem a existência da deliberação maligna em si mesma. Resume Arendt: "Será que a natureza da atividade de pensar, o hábito de examinar, refletir sobre qualquer acontecimento, poderia condicionar as pessoas a não fazer o mal? Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?". 
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Superficialidade e mediocridade, combinação perigosa que propicia terreno fértil à banalidade do mal. Aliás, bem percebe Arendt, o mal aqui em questão é um mal sem estirpe ou base, ou como ela mesma afirma um mal sem profundidade, um mal que "é como um fungo, não raiz nem semente". Trata-se da cria de uma superficialidade estúpida, porém nem por isso menos monstruosa em suas consequências. Bethânia Assy reflete: "Quanto mais superficial alguém for, mais provável será que ele ceda ao mal".
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Nem todo mal tem como pano de fundo a perversão, a psicopatia, a malignidade, o prazer pela crueldade e/ou uma psicopatologia grave qualquer. O mal pode ser perpetuado sem motivação maligna. Vir disfarçado de bom mocismo, isto é, através do burocracismo das obrigações e por meio de comportamentos condicionados onde é incapaz de medir as consequências das ordens dadas, sentindo-se e se achando apenas um mero executor sem responsabilidades. Um mal sem ódio e sem culpa. Um mal que não se pensa mal, e na renúncia do pensamento é incapaz sequer de cogitar e dizer "não posso fazer isso". A ausência de pensamento, o vazio reflexivo, priva-nos de enxergar a lógica da danosidade que podemos ocasionar em certos atos praticados.
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Seguindo o raciocínio de Hannah Arendt não fica difícil entender que o mal advindo da trivialidade da obediência irrefletida é um mal sem profundidade nem dimensão demoníaca. Um obediente servil é tão ou mais perigoso do que um indivíduo endiabradamente malvado. Eichmann já dizia em sua defesa: "não sou o monstro que fazem de mim". Sim, ele não era um monstro, mas agiu como tal. Como diz Marilena Chauí em seu livro Convite à Filosofia, "a consciência moral manifesta-se, antes de tudo, na capacidade para deliberar diante das alternativas possíveis, decidindo e escolhendo uma delas antes de lançar-se na ação". Uma pessoa que aceita deterministicamente as coisas que lhes são incitadas a fazer pode até ser vista como um bom cidadão, mas não se é porque se é apenas um bom cidadão que o mesmo seja uma boa pessoa.
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Do ponto de vista psicológico acho interessante a análise proposta por Christophe Dejours, em seu livro A Banalização da Injustiça Social, quando o mesmo utiliza-se do conceito de "retraimento da consciência intersubjetiva". Destaca Dejours que há o "mundo intersubjetivo" que é o imediatamente adjacente e próximo, e o "mundo do outro lado" ao qual o sujeito não está ligado por nenhuma relação concreta identificável. No "mundo proximal" (intersubjetivo) a pessoa é sensível ao outro e mostra afeição (Eichmann era um bom marido, pai e amigo). Já no "mundo distal" (do outro lado), onde não há vínculo intersubjetivo,  tudo é indiferenciado, isto é, não há compaixão, sensibilidade ou empatia. No mundo distal impera a racionalidade instrumental e a indiferença afetiva; pessoas não são pessoas, são números e metas. O outro, portanto, não é pensado como outro. No mundo distal pode-se fazer mal ao outro, mas não se sente a desumanização do ato pois não se vê o humano que há do outro lado. Não há sentimento algum de culpa, portanto. Uma verdadeira pulsão de morte parece se esconder por detrás da normopatia disfarçada pela máscara de se ser um bom cidadão. Compreende-se, assim, melhor a frase de Raul Seixas: "prefiro ser louco em um mundo onde os normais constroem bombas".
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Deixo abaixo uma passagem do filme Hannah Arendt, dirigido por Margarethe von Trotta, onde a atriz Barbara Sukoma interpreta a referida filósofa, quando a mesma discursa em uma universidade em defesa do seu polêmico livro Eichmann em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal:

Joaquim Cesário de Mello

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