domingo, 15 de maio de 2016

Oscar Wilde e Samba-canção

Depois de muitos anos,  alimentado por infundado preconceito, passei a ser um leitor assíduo de biografias. Qual seria a razão desse preconceito? Achava, entre outras coisas, que as biografias eram  um falso relato da vida de uma suposta pessoa que (não) existiu - um retrato sentimental e afetivo mais do biógrafo do que  do biografado. Tem biógrafos, inclusive,  que são tão agradáveis e conhecedor de seu personagem ilustre que, talvez, o próprio biografado não se reconhecesse no seus textos. Há uma modalidade de  biografia escrita pelo próprio biografado, enfim, um tipo de autobiografia, que assim não pode ser inteiramente classificada, por ter elementos de ficção. São  os interessantes “romances de formação”. Por muito tempo achei esse tipo de texto, apesar de inverídico, mais, bem mais, honesto que a escrita confessional. Li alguns.  Há maravilhosos textos de Goethe, Thomas Mann, Proust, Pedro Nava, Roth, autores que fizeram de suas recordações, elementos para um deslize ficcional - fato que dá beleza e  realidade ao texto. Realidade? Sim, realidade… Sou  adepto a certos paradoxos e não posso deixar de me recordar de Oscar Wilde num livro bastante instigante: “A Decadência da Mentira, Um Protesto”. afastando todas as ironias, chacotas e as provocações de Wilde, devo concordar com ele que a verdade é muito mais expressa na ficção do que nos supostos fatos verídicos. Diz Wilde que Platão ou Sócrates ao relatarem  passagens de suas vidas estavam contando verdades, contudo, verdades que não ocorreram.  Segundo esse escritor, os pensadores de nosso tempo contam mentiras que ocorreram - nada mais desagradável que a vida sem arte -  e arte sobretudo é invencionice. Eis o paradoxo. Minha formação em leituras de psicanálise faz concordar com Oscar Wilde. As pessoas trazem seus sofrimentos às sessões terapêuticas sem ter a menor ideia de que estão enganadas, iludidas e de que falam  dando ênfase, apenas, aos seus desejos e versões. Falar sob influência do desejo é criar e/ou mentir, mas nele, no desejo, há verdades. E assim fazem os biógrafos e cronistas, “criam” imaginando que estão narrando fatos verídicos e inquestionáveis.

Desse modo, comecei a admirar as biografias.


Se uma cidade brasileira pudesse ser personalizada numa pessoa biografável essa cidade seria o Rio de Janeiro. Imagino o Rio de Janeiro como uma mulher impulsiva - diriam no passado,  volúvel -  uma cidade inteligente, natural, insone, bela e assimétrica - com predileção pelo madrugada e pelo entardecer. Por que falo tão bem de uma cidade tão geradora de polêmicas - alguns dirão que minto, pois há por lá bandidagem, contravenção, sofrimento, desigualdade, injustiça. Enfim, minto dizendo verdades. E Ruy Castro poderia ser tão mentiroso quanto eu quando escreveu o recém-lançado  livro “A Noite do Meu Bem” , um texto que considero a biografia noturna do Rio de Janeiro. O livro é maravilhoso, cativante, sedutor. Interessante que, mesmo tendo preconceito com o samba-canção, ao ler a sua história, as suas origens, tenho vontade de procurar artistas e melodias daquela época, especialmente dos anos 1950. Achava - talvez ainda ache - o samba-canção uma modalidade musical muito melancólica. Mas a melancolia, por si só, não diz tudo,  tem beleza.  Nesse estilo musical, contudo,  transbordava-se, eventualmente,  de um certo pieguismo. Ruy Castro, convida-me a uma reconsideração  e assim como um bom samba-canção, pede-me "uma nova e boa chance" de ouvi-la novamente. Se eu pensava que a bossa-nova era o mais carioca dos estilos musicais surgidos no Brasil, hoje julgo, que antes, ainda de madrugada, reinava, com boa qualidade, o samba-canção, como se,  para  cantar uma paisagem carioca ao som da bossa-nova, tivéssemos  que  ter despertado de um sonho ruim e descortinado o dia claro que já amanhecera. Considero uma música emblemática que bem representa esse espírito carioca entre a bossa nova e o samba-canção, a música de Dolores Duran e Tom Jobim: Estrada do Sol. Se  o leitor se interessar em conhecê-la, não deverá somente ler os seus versos, deverá escutar a música, as palavras cantadas que formam essa bela canção - deixei abaixo uma versão interpretada por Elis Regina. 

Quem era dolores Duran? uma das rainhas do samba-canção. quem era Tom Jobim. um dos criadores da Bossa nova - se quiser saber mais, leia Ruy Castro. Dessa junção de talentos e de estilos,  surge a canção tão carioca, tão feminina. O livro de Ruy Castro é um primor, um texto que você teme por terminá-lo, uma história que se deixa adormecer e permitir-se sonhar com a biografia de uma cidade. 



Marcos Preder
   

Nenhum comentário: