domingo, 14 de dezembro de 2014

O mundo em rede traz rápidas notícias e nos dá a sensação, apenas sensação, de que vivemos o maior momento de acesso à informação e ao  e desenvolvimento do intelecto. Seríamos, desse modo, desde o início do século XXI, “inteligências” privilegiadas, por estar vivendo esses tempos de grandiosas trocas de conhecimentos. Temos acesso a conceitos, a biografias, a acontecimentos históricos, a acidentes geográficos, e tudo o mais, com um simples teclar em smartphones, estes já resultado dos avanços científicos das TIs. No entanto, faço uma pergunta: somos realmente melhores ou mais inteligentes que o sujeito que viveu, por exemplo, na Idade Média? Somos mais hábeis?  Penso que a tendência seria responder que sim, que seríamos, de fato, melhores por esse somatório de  razões tecnológicas, além do mais, somar-se-ia ainda o fato de sermos mais livres. Será? Antes de dar resposta, falarei de duas notícias que vi no twitter que muito me impressionou. O twitter, para quem tem pouca familiaridade com aplicativos, é uma rede social que, a depender de como é manuseado, atualiza, quase que instantaneamente acontecimentos de relevância do dia a dia. Lê-se, resumidamente, tudo que ocorre no mundo que seja (ou não) do seu interesse.  E nesse aplicativo, li no mesmo dia as seguintes postagens: “Bíblia foi votada como mais valiosa para a humanidade do que o livro ‘A Origem das Espécies’ de Darwin”. os comentários que se seguem a esta postagem lamentam que a religião tenha vencido a ciência; a segunda postagem: “A Divina Comédia de Dante é considerada discriminatório e ofensiva, para ONG italiana”.


As duas notícias parecem não ter nada em comum, mas traz uma preocupação na formação do pensamento dos tempos atuais, a visão exclusivamente cientificista e a desconsideração com texto histórico em nome de uma “ética” (assim mesmo, com aspas) embusteira – no artigo que fala da obra de Dante, a ONG (de direitos Humanos, por sinal) não recomenda leitura em razão de ser “antissemita, homofóbica, islamofóbica, racista” etc.  No outro que fala da bíblia mostra um ar de surpresa e de desdém com o texto religioso, como se conhecer qualquer texto desse tipo fosse uma perda tempo frente ao  progresso da humanidade.

Não sou religioso, nem medieval, mas acredito que o texto bíblico, por exemplo, não se engrandece por trazer verdades – verdades que nem a ciência as traz, pois não há verdade absoluta.  O texto bíblico, traz reflexões  metafísicas e filosóficas quem vão bem mais além da crença religiosa ou de uma narrativa de um evento histórico.   Retrata-se nela, em meio a parábolas e recursos alegóricos, muito das condições e impasses éticos atravessado pela humanidade. Se o leitor é religioso, cristão ainda acrescentará suas questões de fé; se o leitor não tem religião nem acredita que a leitura da bíblia traga alguma construção ética útil, que pelo menos se reconheça que esse livro é  bastante influente  na literatura mundial. Portanto, não me surpreendeu a pesquisa que destaca a bíblia – embora que eu ache a “Origem das Espécies” um livro realmente muito importante.


A discussão se abre no intervalo ciência/religião, verdade/mito. Cabe lembrar que muito do que foi considerado científico em outros tempos, tornou- se mito ou metáforas ;  uma das visões de mundo mais “científicas”  que perdurou por mais de mil  anos foi  a teoria geocêntrica  de Ptolomeu,  que afirma que a  terra era o centro do Universo e que os astros giravam no seu entorno. Suas ideias, naturalmente, eram bem aceita pela igreja, e   foi defendida como valor de saber de ciência - pelo menos do que se pensava de ciência naquele tempo. A visão ptolomaico foi influente em toda forma de conhecimento e de pensamento filosófico, e foi inspirado nessa cosmologia, que Dante construiu uma das obras mais belas  já escritas: “A (Divina) Comédia”. Nela se abre um diálogo do mundo místico medieval com o mundano, do mundo virtuoso com o  mundo transgressor. Na verdade, a obra mostra a divisão ética do sujeito medieval.  Não é um tratado teológico - embora que o autor seja conhecedor da ética cristã, Dante  propôs uma discussão  mais teleológico que fundamentalista. Nas alegorias das virtudes e das errâncias  do ser humano,  “A Comédia”  carrega muito mais realidade do que muitos outros textos  que se propuseram trazer ciência. Dante divide seu livro em Inferno, Purgatório  e Paraíso  não apenas  para construir uma teoria religiosa, mas para mostrar cada fosso, precipício  da condição humana. O céu de Dante é o mesmo céu da “Almagesto”  ptolomaica, mas cabe lembrar que a preocupação do escritor não reside numa teoria astronômica,  ele apenas  se utilizou da astronomia possível ao pensadores medievais, do mesmo modo, temos que nos dar conta que valores do século XV devem ser relativizados aos leitores do século XXI.



As pessoas que fazem essa leitura muito linear de Dante, provavelmente são pouco familiarizadas com textos  de literatura - fato não raro na atualidade - ; são as mesmas pessoas que assistem a um filme e se incomodam, por achar que a criação dramática é tudo “de mentirinha” e que não tem qualquer valor de utilidade prática. O mais grave nesses “leitores” é justamente o seu “poder regulatório”, de recomendar ou condenar uma determinada obra e fazer com que isso tenha valor de lei, em meio às suas  recomendações pedagógicas .

 Imagino que jovens se interessam por literatura e arte ainda no colégio, e que, por essas épocas, são  apresentadas  as obras  de  Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos etc. Que fazer se encontrarmos algum conceito ou alguma conduta hoje questionável? Proibir, demonizar ou regular? Monteiro Lobato e Gilberto Freyre tiveram suas obras demonizadas recentemente pelas rede sociais, sob  acusação de racismo. A demonização, inclusive,  é regra em redes sociais. As postagens feitas,  em geral, por palpites ou frases de efeito, por quem apenas ouviu o galo cantar, tentam dar status de pensador a muitos imbecis.  Desse modo, pensam que estão fazendo um mundo mais humanizados. Será? Se assim for,  prefiro entrar nesse novo mundo, supostamente melhor,  com a frase:    “Deixai toda esperança, vós que entrais”(canto 3, as portas do inferno  - A Comédia)

Marcos Creder

Nenhum comentário: