O
mundo em rede traz rápidas notícias e nos dá a sensação, apenas sensação, de
que vivemos o maior momento de acesso à informação e ao e desenvolvimento do intelecto. Seríamos,
desse modo, desde o início do século XXI, “inteligências” privilegiadas, por
estar vivendo esses tempos de grandiosas trocas de conhecimentos. Temos acesso
a conceitos, a biografias, a acontecimentos históricos, a acidentes
geográficos, e tudo o mais, com um simples teclar em smartphones, estes já
resultado dos avanços científicos das TIs. No entanto, faço uma pergunta: somos realmente melhores ou mais
inteligentes que o sujeito que viveu, por exemplo, na Idade Média? Somos mais
hábeis? Penso que a tendência seria responder que sim, que seríamos, de fato, melhores por esse somatório de razões tecnológicas, além do mais, somar-se-ia
ainda o fato de sermos mais livres. Será? Antes de dar resposta, falarei de
duas notícias que vi no twitter que
muito me impressionou. O twitter,
para quem tem pouca familiaridade com aplicativos, é uma rede social que, a
depender de como é manuseado, atualiza, quase que instantaneamente
acontecimentos de relevância do dia a dia. Lê-se, resumidamente, tudo que
ocorre no mundo que seja (ou não) do seu interesse. E nesse aplicativo, li no mesmo dia as
seguintes postagens: “Bíblia foi votada como mais valiosa para a humanidade do
que o livro ‘A Origem das Espécies’ de Darwin”. os comentários que se seguem a esta postagem lamentam que a religião tenha vencido a ciência; a segunda postagem: “A Divina Comédia de Dante é considerada discriminatório e ofensiva,
para ONG italiana”.
As
duas notícias parecem não ter nada em comum, mas traz uma preocupação na
formação do pensamento dos tempos atuais, a visão exclusivamente cientificista
e a desconsideração com texto histórico em nome de uma “ética” (assim mesmo,
com aspas) embusteira – no artigo que fala da obra de Dante, a ONG (de direitos
Humanos, por sinal) não recomenda leitura em razão de ser “antissemita, homofóbica,
islamofóbica, racista” etc. No outro que
fala da bíblia mostra um ar de surpresa e de desdém com o texto religioso, como
se conhecer qualquer texto desse tipo fosse uma perda tempo frente ao progresso da humanidade.
Não
sou religioso, nem medieval, mas acredito que o texto bíblico, por exemplo, não
se engrandece por trazer verdades – verdades que nem a ciência as traz, pois
não há verdade absoluta. O texto bíblico, traz reflexões metafísicas e filosóficas quem vão bem mais
além da crença religiosa ou de uma narrativa de um evento histórico. Retrata-se nela, em meio a parábolas e
recursos alegóricos, muito das condições e impasses éticos atravessado pela
humanidade. Se o leitor é religioso, cristão ainda acrescentará suas questões de
fé; se o leitor não tem religião nem acredita que a leitura da bíblia traga
alguma construção ética útil, que pelo menos se reconheça que esse livro é bastante influente na literatura mundial. Portanto, não me
surpreendeu a pesquisa que destaca a bíblia – embora que eu ache a “Origem das
Espécies” um livro realmente muito importante.
A discussão
se abre no intervalo ciência/religião, verdade/mito. Cabe lembrar que muito do
que foi considerado científico em outros tempos, tornou- se mito ou metáforas ;
uma das visões de mundo mais “científicas” que perdurou por mais de mil anos foi a teoria geocêntrica de Ptolomeu, que afirma que a terra era o centro do Universo e que os astros
giravam no seu entorno. Suas ideias, naturalmente, eram bem aceita pela igreja,
e foi defendida como valor de saber de
ciência - pelo menos do que se pensava de ciência naquele tempo. A visão
ptolomaico foi influente em toda forma de conhecimento e de pensamento
filosófico, e foi inspirado nessa cosmologia, que Dante construiu uma das obras
mais belas já escritas: “A (Divina) Comédia”.
Nela se abre um diálogo do mundo místico medieval com o mundano, do mundo virtuoso
com o mundo transgressor. Na verdade, a
obra mostra a divisão ética do sujeito medieval. Não é um tratado teológico - embora que o autor seja conhecedor da ética cristã, Dante propôs
uma discussão mais teleológico que
fundamentalista. Nas alegorias das virtudes e das errâncias do ser humano,
“A Comédia” carrega muito mais
realidade do que muitos outros textos
que se propuseram trazer ciência. Dante divide seu livro em Inferno,
Purgatório e Paraíso não apenas para construir uma teoria religiosa, mas para
mostrar cada fosso, precipício da
condição humana. O céu de Dante é o mesmo céu da “Almagesto” ptolomaica, mas cabe lembrar que a preocupação
do escritor não reside numa teoria astronômica, ele apenas se utilizou da astronomia possível ao
pensadores medievais, do mesmo modo, temos que nos dar conta que
valores do século XV devem ser relativizados aos leitores do século XXI.
As
pessoas que fazem essa leitura muito linear de Dante, provavelmente são pouco familiarizadas
com textos
de literatura - fato não raro na atualidade -
; são as mesmas pessoas que assistem a um filme e se incomodam, por achar que a
criação dramática é tudo “de mentirinha” e que não tem qualquer valor de
utilidade prática. O mais grave nesses “leitores” é justamente o seu “poder
regulatório”, de recomendar ou condenar uma determinada obra e fazer com que
isso tenha valor de lei, em meio às suas recomendações pedagógicas .
Imagino que jovens
se interessam por literatura e arte ainda no colégio, e que, por essas épocas, são apresentadas as obras de Machado
de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos etc. Que fazer se encontrarmos algum
conceito ou alguma conduta hoje questionável? Proibir, demonizar ou regular? Monteiro
Lobato e Gilberto Freyre tiveram suas obras demonizadas recentemente pelas rede
sociais, sob acusação de racismo. A
demonização, inclusive, é regra em redes
sociais. As postagens feitas, em geral,
por palpites ou frases de efeito, por quem apenas ouviu o galo cantar, tentam
dar status de pensador a muitos
imbecis. Desse modo, pensam que estão
fazendo um mundo mais humanizados. Será? Se assim for, prefiro entrar nesse novo mundo, supostamente
melhor, com a frase: “Deixai toda esperança, vós que entrais”(canto
3, as portas do inferno - A Comédia)
Marcos Creder
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