quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

DIÁRIO DE FÉRIAS


"CRIMINOSOS" POR NATUREZA





Às vezes me pego perguntando se existiria psicólogos clínicos se não houvesse na natureza humana o sentimento de culpa. Exageros à parte, a culpa parece permear na base da grande maioria dos conflitos e sofrimentos humanos. E qual sua origem? Como se forma em nós o fomentador de tal estado emocional? A culpa é um sentimento ou uma emoção? Afinal, o que é culpa?
Pra início de conversa não existe um instinto ou impulso culposo. Não nascemos com tal afeto. Um neonato, um bebê, não manifesta sentir nenhuma culpa, por nada. Manifesta ansiedade, medo, raiva, mas não culpa, assim como vergonha, pudor, ciúme, empatia e outros. Estes não são afetos primários, são secundários, isto é, desenvolvidos a partir de nossas relações interpessoais. Por isso os americanos chamam de "afetos sociais". Para se sentir culpa o psiquismo do indivíduo necessita compreender que de alguma forma violou algum preceito moral e/ou ético. Habitualmente referimos como um sentimento penoso decorrente da consciência de se ter transgredido alguma regra. Porém, a psicanálise nos introduz o conceito de "culpa inconsciente", ou seja, a que se manifesta de várias maneiras indiretas (punição) sem que a pessoa tenha consciência de qualquer ato infrator de sua parte e, consequentemente, conscientemente não sente culpa, apenas suas consequências (castigo).
Do ponto de vista estritamente freudiano a culpa origina-se do medo. Medo da autoridade paterna e da energia agressiva que o sujeito dirige a este devido a interdição de satisfações de cunha impulsionais. O medo é o medo de perder o amor paterno (representação e modelo de figura de autoridade) em decorrência de se ódio e agressividade em relação a ele. A agressividade (energia agressiva) inicialmente dirigida à figura do pai é introjetado ou internalizado, isto é, volta-se ao próprio ego da criança em formação, originando, assim, aquilo que Freud denominou de Superego. 
Já para Nietzsche o sentimento de culpa é inseparável da moral judaico-cristã. Segundo o filósofo, o homem para ser feliz precisa afirmar sua potência de vida. Devido à moral ela é reprimida, levando, dessa maneira, o ser humano a uma existência submissa e apenas reativa. E, assim, o homem vive constantemente no conflito entre a moral que reprime e a vontade de potência que quer se exprimir. Como também ensina Schopenhauer a vontade é cega, insaciável, uma força que absolutamente livre nos destruiria. Para este a vontade necessita de freios. Já para Nietzsche a vontade representa um eterno dizer-sim. Pode-se ver, portanto, dois lados de uma mesma moeda: a vontade como libertadora e a moral com repressora; e a moral como necessária e a vontade como perigosa se plenamente liberta.
Todavia a culpa não é necessariamente resultado do embate entre moral x desejo (impulso). O buraco, como se diz, pode ser ainda mais embaixo. Lá embaixo, ou melhor, lá no fundo da alma humana somos todos narcísicos. Em nosso narcisismo original acreditamos que podemos controlar tudo, inclusive a vida e o mundo. Quando frustrado o psiquismo, em seu narcisismo essencial, pode vir a se sentir "culpado", afinal lá no fundo a mente se acha onipotente. Ainda neste sentido bem primário a culpa não é por algo que realmente se fez, mas sim consequência de uma sensação ilusória de poder , embora a vida, de fato, ocorra indiferente aos nossos desejos narcisistas. Neste sentido, a culpa de caráter oral é resultado da não aceitação de nossa insignificância frente à vida e ao universo. No fundo, no fundo, a mente humana não aceita que sejamos falhos, defeituosos, impotentes e que erremos. Errar é humano é para a parte racional e superior do psiquismo humano. No fundo de nossas entranhas psíquicas nos exigimos corresponder a um Ego Ideal.
Por outro lado, embora o cérebro sozinho não gere culpa, a sua disfuncionalidade neuroquímica incrementa culpas existentes e/ou imaginárias. Isto ocorre, por exemplo, na depressão e nos estados de ansiedade (angústia). Uma dissincronia e excesso de trocas neuronais de sinais entre o córtex pré-frontal e o sistema límbico contribui para a recorrência de pensamentos negativos e auto-depreciativos que se encontram na base da ruminação culposa de pessoas com desequilíbrio neuroquímico.

No tocante a culpa proveniente de grandeza, como acima citamos, a pessoa necessita desenvolver a aceitação de que ela não é nem tão poderosa nem tão controladora da vida como gostaria de ser, afinal uma coisa é você ser responsável pelo seus atos, a outra é acreditar que as coisas têm que acontecer como você quer. É como se necessitasse do seguinte diálogo interno:

- por que falhei, por que errei?"
- porque você é humano, ora bolas!

Na articulação entre narcisismo e o sentimento de culpa verifica-se a exacerbação deste último na construção do sujeito contemporâneo, principalmente quanto às exigências sócio-culturais pós-modernas de beleza, juventude e gozo. Se a culpa como elemento civilizatório do laço social declina em uma sociedade cada vez mais individualizada e narcisista, por outro lado acentua-se no tocante ao indivíduo em relação consigo mesmo pela frustração e incompetência de corresponder a uma imagem de perfeição, sucesso inteiro e plenitude que nos é diariamente imposto e que encontra eco psíquico naquilo que convencionamos chamar de Ego Ideal.
O narcisismo primário, segundo Freud, é o terreno psicológico de onde irá paulatinamente emergir o sujeito humano. Todavia o narcisismo cultural parece conservar o narcisismo em suas características primárias em nossa mente mesmo após a infância e a adolescência. A angústia de impotência em um sujeito ilusoriamente onipotente é gerador de raízes inconscientes de culpa, culpa por não conseguir ser o que o Ego Ideal cobra que ele seja. Aqui não se fala de uma culpabilização pela relação com o outro (superego propriamente dito), mas sim de uma culpabilidade em relação com os ideais grandiosos e grandiloquentes ainda mais fomentados pelas cobranças midiáticas de eterna juventude e beleza apolínica. Se a menos repressividade sócio-moral diminui por um lado, por outro eleva-se a culpa narcísica. Até parece com aquela expressão popular que diz "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come".
É inescapável, portanto, o ser humano sentir o sentimento de culpa. Do ponto de vista da condição humana o bicho homem está fadado a sentir culpa. Sem um mínimo de sentimento de culpa estaríamos no âmbito da psicopatia propriamente dita. Freud foi perspicaz ao afirmar que "o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa". O eterno conflito humano entre o Princípio do Prazer e o Princípio de Realidade nos coloca fadadamente frente à culpa. Freud também percebe duas origens para a culpa, isto é, aquela que surge por temor da autoridade (origem externa) e a que surge posteriormente do medo do Superego (origem interna). Desejos proibidos e renunciados, porém vivos internamente e que não podem ser escondidos do juiz interno (Superego), é fonte constante de sofrimento psíquico. Para alguns mais, para outros menos.
Chegamos, pois, a conclusão que o sentimento de culpa é fundamental para a humanidade no que tange a própria construção da civilização humana. Os sentimentos de responsabilidade e arrependimento são por natureza necessários ao existir humano. Talvez o que possa incomodar seja os seus excessos. Embora comumente coloquemos a culpa no conjunto dos afetos negativos - assim como o medo, a raiva, a inveja e a tristeza, entre outros - todos eles são positivos para que o humano seja realmente um ser humano. Assim sendo, o sentimento de culpa é um importante mecanismo psicológico utilizado pela civilização para domar a agressividade e o egoísmo humano.
Se o "pecado original" é resultado da culpa de se ter provado do fruto proibido, a culpa humanamente humana do homem é resultado da possibilidade de podermos viver em sociedade. A culpa patológica, então, é outra história.

Joaquim Cesário de Mello


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