domingo, 21 de dezembro de 2014

CONFISSÕES EM UM DOMINGO SINCOPADO




         O cinza de junho já nos encobre às cabeças protegidas pelos tetos dos apartamentos e das casas. Em nossas pequenas colmeias cercadas de cotidiano olhamos as ruas molhadas e os intermitentes pingos de chuva. Quase não ouço o cantarolar matinal dos pássaros. Tudo lá fora parece tão deserto quanto os cemitérios que trago dentro de mim. A cerração que desaba sobre nós pode reduzir a visibilidade dos horizontes, contudo aprofunda-me de interiores onde encontro revivido os meus mortos. Por instantes sou londrino e sou úmido, sou um inteiro silêncio cheio de sussurros. As vozes que me vêm de longe e de ontem ensurdecem-me dos pequenos ruídos domésticos. A neblina que de fora da janela não se forma aproxima-se de mim, e agora me vejo assim enevoado pelo contato das minhas superfícies com meu solo. Algo se forma em minhas particularidades contidas quando, privado do sol, torno-me uma bruma condensada pela evaporação das lembranças. Estou como sempre estive desde a minha infante juventude: só e cercado de livro por todos os lados. Será isto que sempre fui? Será que sou uma ilha sem pontes, ou será que sou um estrangeiro em minha própria casa? Talvez eu seja um exilado do futuro do meu passado, um expatriado do território de minha história. Seja lá o que eu realmente for, somente sei que não sou quem poderia ter sido. Entre a criança e o homem há um intenso corte, e esta cicatriz que de muito carrego me faz sempre lembrar que sou um Joaquim descontinuado.

                Herdo dos meus ancestrais este baú de memórias. Entre quinquilharias várias, resquício de uma civilização familiar fenecida lá está, como quem me espera, uma antiga fotografia de minha infância não menos antiga. Por detrás do preto e branco manchado de tempo a criança me olha através dos anos. O que pensa ela sobre o que sou? Será que em seus ingênuos olhos, cujo olhar que vem de tão longe pelas frestas das reminiscências, sonha ela futuros imaginários onde não habitarei? Contemplas o teu pior pesadelo corporificado no colorido cinzento do hoje que antes te era amanhã? O que tu vês menino com estes olhos que um dia já foram os meus?
                  No mirar de minha mocidade primeira escondem-se desejos que agora me chegam transformados em vagas lembranças. Ficaram tão aprisionados como este meu olhar desbotado, nos instantes distantes que a foto não flagra, as aventuras galácticas do astronauta que jamais me tornei. Os monstros alienígenas que tantas vezes derrotei estão enterrados junto aos brinquedos esquecidos em algum lugar do armário que já não existe mais. A eternidade da infância parece terminada ali naquele retrato de um minuto congelado. Durei apenas a perpetuidade finita de minhas fantasias pueris cuja pureza agora se perde no encontrar deste comigo adulto. Desculpe-me meu ontem pelo hoje que te oferto.
                               Afoguei meus sonhos com o acumular dos aniversários. Andei por becos e ruelas, dobrei esquinas e segui em frente por vias estreitas ladeadas de elevados muros e aqui cheguei depois da última curva. Meu itinerário foi feito pelo passear impreciso dos silentes pés. Afastei-me tanto do menino, agora eu sei, que chego até a duvidar se nasci menino. Talvez eu não tenha sido uma criança sonhando com o adulto, mas um homem que sonha com a criança. Minha vida tem sido uma noite inteira onde sonâmbulo transito entre uma quimera e outra. Isto o que sou: um intervalo onírico onde me construo como um castelo no ar.
                               Sim, tornei-me este homem interrompido, uma criança inacabada. Minha humanidade toda é feita do que não fiz e do que nunca farei. O passado permanece em mim colado como uma segunda pele que por debaixo do tecido carnal que me encobre e que se expõe nos espelhos encapsula a minha mais verdadeira substância. Em meio à derme e o esqueleto encontra-se um Joaquim pretérito vindo de uma era anciã que não caducou ou sepultou seus apetites. O anoréxico sonhador em que me converti é o oposto do bulímico em que outrora já fui. Fiz-me assim de sonhos vomitados.
    Acaso fosse uma fruta estaria apodrecida no asfalto urbano e infértil de minha existência. As sementes que nela residem não tiveram a sorte de encontrar o pó da terra para germinar. E como um filho que não coube ser pai sou ao mesmo tempo órfão e estéril, pois infecundei minha vida com a fecundidade minhas perdas.
    O rei tornou-se súdito, o guerreiro tornou-se covarde, e o médico virou paciente e o espadachim transformou-se em escudo. Nada do que quis ser se fez. Nada do que sonhei transbordou-se em realidade. Tudo que fui era apenas brincadeiras, folias de um menino que se levava a sério, enquanto o homem que aqui escreve e que se acredita sério somente é um pálido reflexo de um folguedo juvenil. Uma galhofa com número de identidade.
    Nestes dias em que ainda respiro sou um rei sem reinado, sou um guerreiro entediado em tempo de paz, e o branco que me encobre é tecido pelas ausências das realizações. Como posso esgrimir se perdi a espada? Como posso voar em espaços siderais se a minha nave ficou ali no distante olhar da criança neste retrato que me olha sem me amar? Sou um cowboy sem cavalo, sou somente aquele que escreve poemas para purgar suas moras e suas culpas.

                Mas se eu continuasse a ser quem era e quem poderia ter sido não seria hoje quem sou.  Não sendo quem sou, não escreveria o que ora escrevo, nem pensaria ou sentiria o que penso e sinto. E assim não seria eu: seria outra pessoa. Não conheceria quem conheci, não amaria quem amei e amo, não derramaria as lágrimas que derramei, nem muito menos sorriria os sorrisos que sorri. Sequer teria hoje as nostalgias que tenho. Seria tudo então tão diverso e diferente que já não me reconheço antes de onde me interromperam. Minha continuidade, portanto, é esta própria descontinuidade que chamamos de biografia ou história. Definitivamente não sou um homem interrompido, mas um homem percorrido que olha os dias com olhos de menino triste.





Joaquim Cesário de Mello

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