terça-feira, 5 de agosto de 2014

UM REMÉDIO CHAMADO TERAPEUTA





À primeira vista muitos podem considerar que os efeitos terapêuticos de uma psicoterapia estejam diretamente ligados ao manejo técnico empregado. Muito provavelmente, é claro. Todavia, muitos desses muitos acabam por secundarizar ou até mesmo escamotear a fundamental importância da própria pessoa do terapeuta em relação ao processo de melhora e mudança do seu cliente. Digo inclusive que alguns nem se dão conta da relevância do mesmo e acabam reduzindo o fenômeno transmutativo de uma psicoterapia a um amontoado técnico e, às vezes, quantitativo e matematizável. Uma lástima, se assim for.
Comecemos, pois, pelo começo de tudo, isto é, pelo uso do próprio termo psicoterapia, que vem etimologicamente da junção de duas palavras gregas psique e therapeia. A primeira significa alma e a segunda tratamento. Então, diriam os mais apressados, psicoterapia é: tratamento da alma. Não. Therapeia (tratamento) refere ao meio e não ao fim, ou seja, se psicoterapia fosse tratamento da alma estaríamos traduzindo-a como finalidade que é a de tratar a alma do paciente. Porém, repito, tratamento é meio pelo o qual se busca um objetivo terapêutico. Se psicoterapia fosse "tratamento da alma" hidroterapia seria "tratamento da água", e não é: hidroterapia é tratamento através da água, pois o tratamento se faz por meio da água. Neste sentido, psicoterapia representa tratamento através da alma. E alma de quem? Do psicoterapeuta. É ele e sua presença que funciona como vetor do tratamento. Ah! - diriam mais uma vez os apressados - um psicoterapeuta é um profissional formado e capacitado a aplicar técnicas psicoterápicas. É fato. Mas também é fato que um psicoterapeuta é antes de tudo uma pessoa humana - é obvio. E uma pessoa humana é construída de biografia, vivências, experiências, sonhos, realizações e frustrações, sentimentos, intelecto, cultura... enfim: é uma personalidade. E não dá pra escapar ou se esconder por detrás de técnicas, sua personalidade estará sempre lá e influenciará a maneira como cada um maneja as técnicas, por mais semelhantes que elas sejam. Se cada caso é um caso (como se diz popularmente), então cada terapeuta é um terapeuta, e cada relação psicoterápica é uma relação psicoterápica distinta. Ah, como seria simples se tudo e todos fossem iguais, contudo se assim fosse possível que chato e enfadonho a vida seria, não?
Não é necessário apontar estudos e pesquisas como as Martin Seligman (EUA) para sabermos que a qualidade e eficácia de uma psicoterapia se baseia na relação estabelecida entre o paciente e seu terapeuta. As características de personalidade de ambos são essenciais e vitais a boa condução do processo em si. Seria tolo ou ingênuo desprezar a pessoa do psicoterapeuta como uma importante variável da intervenção psicoterápica. Os estilos pessoais e atitudinais de lidar com as emoções, os pensamentos e as outras pessoas por parte do terapeuta fazem parte intrínseca da complexidade interativa contida na relação que convencionamos chamar de psicoterapia. Sua maturidade como ser humano e pessoa, conjugada a sua experiência profissional e sua bagagem existencial e cultural, influencia e determina o que se escuta e como se intervem. Não é a toa que Jung já dizia que "a personalidade do terapeuta é o grande fator curativo da psicoterapia".
Direta ou indiretamente a psicoterapia é um trabalho de ressignificação psíquica, ressignificação esta que envolve pensamentos, sentimentos, atitudes, valores, posturas, visão de mundo, auto-imagem e relacionamentos. É um verdadeiro trabalho, muitas vezes de "formiguinha", de reconstrução onde histórias antigas são reformuladas à luz de novas perspectivas co-produzidas na interação dialogal com o terapeuta, abrindo, assim, novas possibilidades para a pessoa e a vida do cliente em questão. Neste sentido um psicoterapeuta é uma espécie de reconstrutor partícipe que contribui para a cogeração de uma nova narrativa, onde a história pessoal de construção do mundo - sua e do cliente - dialeticamente se envolvem e se interligam com o objetivo da abertura de novas premissas e ampliações de horizontes relacionadas ao discurso inicial da pessoa que está no exercício do papel de paciente. O terapeuta não é em si um especialista com visão privilegiada, mas sim um facilitador do colóquio e da conversão terapêutica. Salvador Minuchin dizia que a meta psicoterápica é transcender a técnica, transformando-a em arte. Qual o artista, um artista de verdade, que não tenha desenvolvido um estilo próprio a partir de seus recursos, crescimento e limitações pessoais.
A criatividade faz parte do processo, ou como afirma Goolishian: "Se você sabe o que fazer, isto o limita. Se você sabe mais a respeito do que não fazer, então existe uma infinidade de coisas que podem ser feitas". Não custa nada enfatizar que o principal instrumento de um psicoterapeuta é sua história de vida, sua maturidade e seus conhecimentos gerais e/ou específicos. Tanto a teoria quanto a técnica só se tornam vivas e tomam morfologia real através do ser humano e personalidade do terapeuta. Uma psicoterapia, qualquer que ela seja, voltada ao apoio ou voltada ao insight, é sempre um encontro, um encontro que é mais do que interpessoal, que é também intersubjetivo. 
Por muitos anos, devido a forte influência da Psicanálise em seu modelo clássico, a personalidade do terapeuta era vista como influenciando negativamente o processo psicoterápico. E isto pode mesmo às vezes ocorrer. Todavia não podemos evitar que no relacionamento clínico a pessoa real do profissional não contribua inevitavelmente para os destinos da psicoterapia. O material a ser interpretado e manejado têm como ponto de partida a personalidade do terapeuta. É nela que se escuta e é dela que se manifestam as intervenções. Sim, a personalidade do terapeuta tanto é um recurso indispensável quanto pode ser também um obstáculo. Quanto mais ele estiver cônscio das dimensões do seu próprio ser, de suas precariedades e de suas potencialidades, quanto menos inibido e neurótico for, quanto mais se autoconhecer e maduro estiver, mais útil ele será em sua proposta psicoterápica com seu cliente.
Não se é eficazmente e nem funcionalmente um terapeuta aquele que se esconde por detrás de uma rígida máscara tecnicista. Óbvio que seus conhecimentos profissionais são de suma importância e destaque, conhecimentos estes adquiridos ao longo do tempo de estudos, pesquisas e prática. Entretanto também é patente que o seu ser como um todo é seu próprio instrumento. A função precípua de um psicoterapeuta é ser uma espécie de "caixa de ressonância" do que ocorre entre ele e seu paciente. Por menos vivencial que seja uma abordagem psicoterápica ela é sempre uma abordagem vivencial e a inautenticidade compromete a qualidade desta relação. Aqui, até mais do que em muitas situações profissionais outras, o trabalho (clínico) exige mais e além do que a formação acadêmica e de todo o conhecimento teórico adquirido. Daí a importância de seguir suas próprias inclinações e preferências ao se recorrer às teorias e às técnicas à disposição, e melhorar cada vez mais tais ferramentas com seu toque pessoal, sua impressão digital, além de se permitir criar outras.
É necessário, portanto, se sentir pessoa no exercício do papel de psicoterapeuta, adquirir ou desenvolver mais reflexividade, flexibilidade e criticidade. É por demais íntima a relação entre as habilidades profissionais e as habilidades pessoais. As duas facetas de uma mesma moeda compõem um todo indivisível, ao ponto de como diz Moreno "a personalidade do terapeuta é a sua habilidade".
Acima escrevíamos que o trabalho clinico exige mais do que a formação acadêmica e do conjunto de conhecimentos teóricos e técnicos aprendidos. Tal ponto é de novo enfatizado para destacar que a posição (não a profissão) de um psicoterapeuta é a posição de escutar, de ir além do só ouvir, de escutar com aquilo que Reik denominou de "terceiro ouvido", isto é, escutar o que diz o paciente e o que não diz, escutar, inclusive, com suas próprias entranhas e vozes interiores. Ter um bom domínio técnico e teórico contribui sobremaneira à mudança do cliente, mas de pouca serventia teria todas as técnicas e metodologias do mundo se não houvesse o self de alguém a conduzi-las.

Joaquim Cesário de Mello

PS: dedico este texto aos meus alunos de Psicologia Clínica que estão começando a passar pela fenda que os levará a esse instigante e imenso universo que é o de lidar com a mente humana e melhor ajudá-la a se desenvolver. Para eles igualmente sugiro a leitura complementar do seguinte artigo "Aprendendo a Ser Psicoterapeuta", de Elizabeth Faleiros, http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932004000100003

3 comentários:

Carla (z) disse...

Agradeço pela dedicatória! Que boas vindas excelentes a essa fase de inauguração. Não podia encontrar seu texto e o de Elizabeth Faleiros em hora melhor.

Diego Lima Gomes disse...

Excelente texto professor. Obrigado pela dedicação nessa etapa da nossa formação.

Ranúzia Lima disse...

Verdade mais que verdadeira, sou prova disso!