domingo, 31 de agosto de 2014

OS CAMINHOS DA VIDA






Quantos quilômetros tem o caminho de uma vida inteira? Incomensurável. Inumerável. Infinito. Tudo isso pelo simples fato de que a estrada da vida não se mede por quilômetros ou metros, sequer centímetros. Se assim fosse poderíamos viver mais de 400 anos e ainda haveria o que caminhar. A trilha pela qual andamos, no curto espaço da eternidade que nos é reservado, só tem seu final ao término de nossa existência. Acaso vivêssemos mais um dia, mais um dia teríamos para andar. O caminho da vida não existe, o que existe é a vida que se vive, do início até seu fim. Trata-se de uma alegoria, de uma metáfora. Ou como versa o poeta espanhol Antonio Machado, "caminhante, não há caminho/faz-se o caminho ao andar".
Prossigamos, pois, com o simbolismo de que a vida é uma estrada e que por ela caminhamos. Somos seres vagueantes a perambular pelo mundo, vasto mundo. São tantos os caminhos do mundo e nenhum sabemos de antemão ou de cor. A jornada é ida, e é longe e distante, muito longe e distante, aonde se pode chegar. Todos os caminhos nos servem - escreve o poeta português Francisco Namora - "em todos serei o ébrio/cabeceando nas esquinas [...] que uma onda vos misture/e vos leve a morrer/numa praia ignorada". É pra lá que vamos: pra'algum lugar. "Qual caminho devo seguir", pergunta Alice. "Depende de onde você quer chegar", diz o gato. "Tanto faz, para onde quer que seja", afirma Alice. E o gato retruca: "Então, tanto faz o caminho que você seguir". E Alice complementa:  "...contanto que eu chegue em algum lugar". "ah, então certamente você chegará lá se você continuar andando bastante", responde o gato. Esta é uma breve passagem do diálogo entre Alice e o gato de Cheshire, em "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carrol. O gato está certo, afinal não basta apenas seguir; é necessário saber aonde queremos chegar, pois se não qualquer caminho serve, qualquer caminho dá em qualquer lugar.


No início o indivíduo homem não é nada, ou melhor, não é definível ainda. Só mais adiante, só depois - como prega o existencialismo sartreano - é que ele será alguma coisa e como a si próprio se fizer. A existência precede a essência, isto é, o que vem primeiro é o existir e o estar vivo; posteriormente cada ser humano constrói a estrutura de quem ele é. A escolha e a responsabilidade por suas escolhas, diz o existencialismo filosófico, é inerente à condição humana. Em outras palavras: "o homem inventa o homem".
Mas, podemos mesmo escolher a vida que queremos ter? Podemos decidir quem seremos? Elegemos livremente o caminho por onde trilharemos o andar de nossas vidas? "Ser é escolher-se", afirma Jean Paul Sartre. Todavia também nos lembra o filósofo Ortega Y Gasset que somos o que somos, mas igualmente somos a nossa circunstância. Circunstância e decisão são dois elementos fundamentais de que se compõe a vida humana e o mesmo Gasset reconhece que é "falso dizer que na vida 'decidem as circunstâncias'. Pelo contrário: as circunstância são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso caráter". Leitura inversa tem o escritor da trilogia "O Senhor dos Anéis", J.R.R. Tolkien quando diz que "aquilo que nós mesmo escolhemos é muito pouco: a vida e as circunstâncias fazem quase tudo". Porém, confessa o poeta Nuno Júdice "mas levo comigo tudo/o que recuso. Sinto/colar-se-me às costas/um resto de noite;/e não sei voltar-me/para a frente, onde/amanhece".
Concordo particularmente com o que pensa Ortega Y Gasset, no sentido de que somos hoje uma parte pequena do que podemos ser. Vivemos a vida dentro de uma vida maior que é o mundo e suas circunstâncias. Não podemos ser estranhos ou alheios a ele. É dentro do mundo, desta vida que nos é maior, que habitam o conjunto de nossas possibilidades e o exercício de nossas potencialidades. Há limites, é claro. Nossas escolhas não são assim tão libertas de qualquer interferência. Todavia, nossas escolhas podem nos alforriar de muitas de nossas correntes, grilhões e algemas - afinal se não somos tão livres assim, também não somos tão destinados igualmente. Nosso caminho não está escrito nas estrelas. São nossos passos e nosso caminhar quem o faz, pois a vida possível de uma pessoa não é fado ou sina, é construção - uma construção que construímos a partir do que nos é dado e até imposto. Ou como ainda diz Gasset: "o nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra a nossa vida", adversidade esta que não transforma a fatalidade em pré-determinismo. Se viemos ao mundo sem escolher, a trajetória que nele haveremos de percorrer em muito terá as marcas visíveis de nossas digitais.
Em seu livro "A Condição Humana", Hannah Arendt sustenta que a condição humana diz respeito às formas e maneiras com que o homem encontra para viver ou até mesmo para sobreviver. Observa Arendt que somos seres condicionados tanto pelos nosso atos e pelo que pensamos e sentimos, bem como pelo nosso contexto sócio-histórico-cultural. Para ela a dignidade humana só é realmente conquistada através da vivência da complexidade da vida. Uma pessoa que somente vive sem questionar sua vida e/ou sua existência se equivale a um animal devido ao seu não uso de sua racionalidade reflexiva. E no "teatro da vida" corremos o risco de interpretarmos papéis ao invés de vivermos uma vida real, consequentemente, autorrealizante. 
Há uma conhecida peça teatral de Samuel Beckett, "Esperando Godot", onde dois mendigos esperam a chegada de alguém que eles nunca viram ou conheceram chamado Godot. Passam todo o enredo próximos a uma árvore esquelética de parcas folhas frente a uma estrada deserta. Dialogam, esperam, dialogam, esperam. Nada acontece, Godot nunca aparece. Em seu teatro do absurdo Beckett nos leva a refletir sobre a condição humana, e pensar sobre pessoas que passam toda a sua existência no aguardo da chegada de algo que lhes irá mudar o curso de suas vidas. Vivem alienados na própria espera. Por que, perguntaríamos, eles não vão embora estrada adentro? Porque não podem, responde o autor na fala de um dos personagens. E por que não podem?, insistiríamos em perguntar. Por que estão esperando Godot, complementa o personagem. 
Creio que a liberdade de que tanto falam os existencialistas não tenha a ver com escolher os objetos disponíveis que encontramos nas prateleiras da vida. Liberdade é saber criar o que se quer e conseguir encontrá-lo. A liberdade de escolher seu melhor e adequado caminho passa pela capacidade de inventar seu próprio caminho - e caminhá-lo. Nisto concordo com Sartre que o homem inventa o homem, e assim entendo suas palavras: "o homem, antes de mais nada, é um projeto que se vive subjetivamente". Que não nos acomodemos por medo ou vergonha de dar um primeiro passo. Que não vivamos os caminho dos outros, pois o caminho é sempre único e singular. Que no andejar em nossa estrada possamos encontrar outros andarilhos e caminhantes que nos cruzam ou paralelamente nos margeiem. Porque cada um faz o seu caminho, e nem sempre o caminho mais fácil é o melhor caminho, assim como não é porque a rosa é mais cheirosa do que o repolho que ela seja mais nutritiva do ele. Sim, caminhante, não há caminho: o caminho se faz no caminhar. Pois, como canta Antonio Machado, são nossos passos o caminho, e nada mais.


Joaquim Cesário de Mello

Um comentário:

Ranúzia Lima disse...

"Liberdade é saber criar o que se quer e conseguir encontrá-lo. A liberdade de escolher seu melhor e adequado caminho passa pela capacidade de inventar seu próprio caminho - e caminhá-lo." Estou aprendendo a me reinventar! Obrigada por me ensinar a usar a inteligência ao meu favor <3