domingo, 17 de agosto de 2014

O SAL DA VIDA





O mundo que baniu a poesia é, pois, o mundo do espetáculo. Esta frase não é minha, mas sintetiza muito. Bauman chama estes atuais tempos multicoloridos, vitrínicos, globalizado, rápido e amostrado de "Modernidade Líquida". Liquidez não tem forma, molda-se conforme o recipiente em que se encontra. Liquidez é sinônimo de fluidez, escorrência e facilidade. Remete à abastança, fartura e abundância. O que é fluído flui, escorre entre os dedos, move-se com facilidade, transborda e vaza. Para alguns a modernidade inaugurada por Descartes e pela Revolução Industrial esgotou-se, transformou-se em Pós-Modernidade. Já para Bauman foi a solidez da Modernidade tradicional que transformou-se em líquida, onde tudo é volátil, inclusive as relações humanas. Vive-se hoje, nos dizeres de Michel Lacroix, o culto das emoções fortes, vibrantes, intensas e adrenalínicas. Tudo parece ter ficado tão ligeiro, tão fast, e por isso mesmo tão superficial. Contemporaneamente - afirma Bauman - se diz eu te amo como quem diz bom dia. E qual o lugar da poesia, arte por excelência contemplativa e introspectiva, nos dias que se passam, ou melhor que se escorrem?

Drummond de Andrade não queria ser um poeta de um mundo caduco. Então, onde pode o poeta se agarrar em meios as árvores da floresta da cultura de massa? O poeta Donizete Galvão entende que o poeta é aquele que atravessa as coisas "para melhor absorver-lhes/a duração e o gosto". Mas os sabores hoje se dissolvem com uma rapidez maior que a nossa boca em sorver o próximo gole. Os moinhos de vento, com quem lutava Quixote, são agora moinhos de carnes e mentes. Ou será que existe algo de mais fútil, raso e frívolo que as frases prontas da cultura de facebook? Há espaço para a poesia em meio a instagrans, whatsapps, twiters e menssegers outros desta aldeia global de que tanta preconizava Marshall McLuhan? O geógrafo Milton Santos reclamava que a fábula de um mundo sem fronteiras promove a pseudo-igualdade de um modo único de vivência que por detrás oculta um globaritarismo que, por meio tecnológicos, transforma-nos, sem apercebermos, em autômatos cidadãos globais. 


Passamos a depender de máquinas e, apenas enxergando imagens e o ligeiro das coisas, coisificamo-nos. Em meados do século passado Marcuse já nos alertava que um homem forjado nas entranhas de uma sociedade tecnológica seria consumista, conformista e acrítico. Perde-se a essência da vida em troca de suas aparências. Uma sociedade cada vez mais industrial e consumista em seus avanços constrói e cria falsas necessidades que visam integrar o indivíduo ao próprio sistema de produção e consumo. Mas, Marcuse, assim como tantos outros e ideias, atitudes e gestos, é do século XX, o século passado, e na atualidade da dita pós-modernidade o ontem é antigamente.

O artista plástico e escultor Giorgio de Chirico manifestava também sua inquietação ao falar quase profeticamente que "perante a cada vez mais materialista e pragmática orientação de nossa era... não seria excêntrico no futuro contemplar uma sociedade na qual aqueles que vivem para os prazeres da mente deixam de exigir o seu lugar ao sol. O escritor, o sonhador, o pensador, o poeta, o metafísico, o observador... aquele que tenta resolver um enigma ou julgar alguém, tornar-se-á uma figura anacrônica, destinada a desaparecer da face da terra como o ictiossauro ou o mamute". Quase profeticamente, pois é isto em que estamos nos tornando: viventes em um mundo escasso de poesia.
Temo o dia em que não haverá mais poetas. Sem poetas quem haverá de traduzir a poesia da vida? Quem nos auxiliará a retirar o sabor insosso de nossas bocas em um cotidiano mecanizado de encargos e gestos? Quem nos recolherá da inércia dos concretos para o transbordar dos sentidos e nos fazer mergulhar na subjetividade objetiva de todas as coisas? Quem descortinará a trama urdida que se oculta por detrás dos arremedos paisagísticos da realidade? Quem nos afetará a alma e transformará o olhar em afeto? Quem despertará, pois, nossa preguiçosa sensibilidade de seu sono bege onde os sonhos se pensam realizar no shopping da próxima esquina? Repito com Manuel Bandeira que "estou farto do lirismo comedido/do lirismo bem comportado/do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente/protocolo e e manifestações de apreço ao Sr. diretor [...] Quero antes o lirismo dos loucos/o lirismo dos bêbados/o lirismo difícil e pungente dos bêbados/o lirismo dos clowns de Shakespeare". O que quero é a leviandade dos poetas e a carne viva das entranhas da vida. Quero o mistério e o desnudar abrupto dos segredos. Prefiro o encanto sinuoso das curvas do que a certeza linear das retas. Cobiço a alucinação excitada dos desvairados ao invés da seriedade de quem se esquece de que o coração é um músculo regado de sangue e versos. Ah!, como quero as entrelinhas, o subentendido, o suspiro silencioso da mudez, a sutileza débil do abstrato, o palpitar latente das estrelas e o que se omite na clareza dos escuros. É melhor o escarro de um bêbado que o cuspe contido dos bem comportados. O que está fora de nossas vistas ali está para um dia ser visto.

"A poesia não quer adeptos - dizia Garcia Lorca - quer amantes". Não é nos livros que a poesia está. Ela está no pó da terra de nossas caminhadas e no fruir do sal das marinas distantes. A moral de um poeta é o fogo do amor que o consome e se exalta. A poesia não é e nunca foi feita de regras e normas. Ela é solta e desperta, e ainda mais se liberta quando se mostra em palavras a pureza impura das formas. Um verso é o reverso da realidade. É a vida colocada de cabeça pra baixo.
O crítico e poeta Nelson Ascher escreve (Folha de São Paulo/2007) que o "o último século, aponta para consumidores cada vez mais preguiçosos, cada vez mais sequiosos de um prazer fácil, repetitivo e que não envolva maiores esforços. Como convencer um público sedado por uma satisfação pré-digerida de que há, sim, prazeres maiores, mas que desfrutá-los requer trabalho, empenho e suor?"


Pensar poeticamente é transgredir, ir além do visível, atravessar o verniz das aparências, encontrar a voz do inexprimível. A poesia é mais verossímil do que a veracidade das verdades impostas, pois ela é o incomum do comum, o sonhar dos acordados, o infinito do limitável. Freud reconhecia que "aonde quer que vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim". Porém, dirão alguns, poetas são observadores de pássaros e nuvens. E um poeta responderia: "chega, disse o pássaro/já não suporto tamanha realidade". Os antigos já sabiam que um mundo sem poesia seria um mundo sem beleza. Para Platão o belo não depende dos objetos e da matéria, pois o belo do mundo tocável e do julgamento empobrecido dos homens é apenas um simulacro da beleza verdadeira oculta das coisas. Um poeta é, assim sendo, aquele que vê a vida com um olhar de estrangeiro.

Dizia Lorca que "todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas". Certo está e escreve Novalis ao afirmar que a poesia é o autêntico real absoluto. E que quanto mais poético, mais verdadeiro. Dai-nos, então, pois, a poesia das ruas e dos meandros, das intimidades caladas das superfícies, dos gemidos das coisas mortas e da insistência do menino que vê o passar da vida como o adejar transitório de uma borboleta.

Dedico minhas inquietações e desassossegos a todos os poetas do ontem, do hoje e do porvir. Sem eles o mundo seria o que apenas é: uma coisa chata metida em uma esfera redonda.
(À Rose, melodia suave dos meus dias)


Joaquim Cesário de Mello 

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