domingo, 3 de agosto de 2014

ALTERNATIVO SÃO OS OUTROS




Recentemente transitou nos palcos recifenses - mais precisamente no teatro da Caixa Cultural - a peça Um chá com Emily Dickinson. Espetáculo à parte, vamos abrir um pequeno espaço para falar da grande Emily, principalmente para aqueles que vivem a aridez cultural contemporânea onde ser cult (ou alternativo, como alguns se auto preconizam) é beber Skol morna em mercados públicos da vida ao som de covers performáticos de Sidney Magal. Cruz credo.

Quem foi Elily Dickinson? Poeta americana do século XIX viveu quase reclusa a maioria dos seus 55 anos de vida. Sua obra só se tornou mundialmente conhecida após sua morte em 1886. Reconhecidamente uma das maiores poetas da história teve uma existência terrena interiorana e isolada. Pouco se sabe dela, provavelmente por não ter tido fatos significativos em sua passagem pela vida, exceto pelos mais de 1700 poemas escritos. O contexto sócio-histórico e cultural de sua época era de clara opressão às mulheres, onde delas se esperavam obediências aos pais e aos maridos. Casamento, maternidade e responsabilidades domésticas era o destino exigido às mesmas. Dickinson, uma mulher isolada, que tanto versou sobre a liberdade e o sofrimento feminino. Seu labor literário soava estranho ao seu tempo, porém a sensibilidade contida em seus versos, sua ironia, perplexidade e ambiguidade é raiz para a modernidade posterior. Uma escrita para além de sua época e que mira certeiramente no alvo da eternidade. A sua originalidade transcende a mera passagem do instante.

"Uma palavra morre
Quando é dita -
Dir-se-ia -
Pois eu digo
Que ela nasce
Nesse dia".



"Julgai-me com ternura" diz ela em um verso. Lírica, romântica e intensa, ler seus textos é verdadeiramente uma experiência inusitada. Muitas vezes trancada em casa evitou o estrelato e a notoriedade, e exilou-se em si como uma ermitã cujo eremitério era a profundeza de sua própria alma. Em uma carta escreve ela: "se a fama me pertencesse, eu não conseguiria fugir a ela - se assim não fosse, o mais longo dos dias seria gasto em seu encalço - e eu perderia a aprovação do meu cão". Publicar em livros estava para ela - dizia - tão distante do seu pensamento como o firmamento está para os peixes. Ou como em um poema afirmava que " a mente pertence Àquele que a deu/ Depois ao que sustenta". Coerente expressava: "Fame is the one that does not stay" (fama é aquela que não demora). Emily decididamente não queria morrer - e conseguiu. Emily Dickinson tinha o dom telegráfico de saber condensar suas agonias e êxtases em linguagem fragmentada impregnada de inovações estéticas.

"Quem está morrendo, amor,
Precisa de tão pouco:
Um copo d’água, o Rosto
Discreto de uma Flor,

Um Leque, talvez, Uma Dor Amiga,
E a Certeza que nenhuma cor
Do Arco-Íris perceba
Quando embora for."


"A minha vida fechou-se duas vezes antes de se fechar". Lê-la é como ouvi-la falar baixinho, quase inaudível. Compreendê-la é prescrutar as entrelinhas como quem ausculta a silenciosa respiração inexprimível da alma. Ou como ela mesma diz, "dizer toda a verdade, mas obliquamente". Por isso o batimento cardíaco de seus versos não se faz na leitura direta dos mesmos, porém de soslaio no transversal e transverso dos mesmos. Como afirma o tradutor José Lira, a obra de Emily Dickinson é uma colcha de retalhos costurada com poemas de grande força lírica. Parece mais até um  rascunho, esboços de sugestões e insinuações, ruídos e silêncios. Entre suas temáticas preferidas temos a morte e a imortalidade, assim como o amor, a dor, a fé e a esperança na vida. 
Escondida do mundo em sua agorafobia, observou o mundo como poucos. Reclusa, fez-me mítica. Dela só se sabe uma única foto (aqui utilizada), e embora apareça às gerações seguintes vestindo preto, a cor branca foi a que usou em seus últimos anos de vida. O branco símbolo, o mesmo branco que se encontra em uma folha de papel antes de perder sua virginal brancura pura pelos traços de suas escritas. O branco que - como diz a poeta Cláudia Fernandes - "seria apenas uma cor/ se não fosse para o escuro/ um indesculpável insulto". A branca dor da escrita, como no título do livro de Lucia Castello Branco em que traduz poemas e cartas de Dickinson.

"Escondo-me na minha flor,
Para que, murchando em teu Vaso,
tu, insciente, me procures -
Quase uma solidão".

Não é hoje que quem me conhece, de perto ou de longe, sabe o quanto entendo a poesia como a expressão primeira e maior da alma humana. Não há psicologia vivida em que não haja poesia. Um poeta é mais do que uma antena de uma alma; um poeta é a própria alma que se fez antena. Desculpem-me, pois, aqueles que se acham alternativos ou cults por gostarem de agitos da moda, de cerveja morna e de tira-gostos de origem duvidosa. Se para tais ser alternativo é sentar em cadeiras desconfortáveis, no mormaço sudoroso de meio-dia e ouvir Maria Gadú, então, decididamente, alternativo são os outros.
Prefiro, então, o que diz Emily Dickinson quando diz:

"Não sou Ninguém! Quem és tu?
Também - tu não és - Ninguém?
Somos um par - nada digas!
Banir-nos-iam - não sabes?

Mas que horrível - ser-se - Alguém!
Uma Rã que o dia todo -
Coaxa em público o nome
Para quem a admira - o Lodo."

Joaquim Cesário de Mello


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