domingo, 24 de agosto de 2014

Daqueles que nos fizeram rir


Há uma história comum que escutei, não me recordo quando, e a achei bastante curiosa.
Diz que um senhor procurou um médico queixando-se de  desânimo, entristecimento e falta energia. Disse:
“Doutor, sinto um desânimo, uma tristeza profunda, um tédio pelas coisas da vida, não vejo graça em nada. Durmo mal, alimento-me mal, não sinto prazer algum pelo trabalho - apesar de ainda conseguir disfarçar e ninguém perceber. Não tenho vontade de nada, só vontade de chorar. Já cheguei a pensar em desistir da vida..."
O médico, como se tentando compreendê-lo e, ao mesmo tempo, oferecer-lhe uma solução, indagou-lhe:
"Olha,o senhor me parece uma pessoa saudável, pelo menos clinicamente... Não tem motivos para estar assim, percebo, contudo, que algo não vai bem... O senhor parece-me depressivo. Sugiro arejar a vida, divertir-se,  alegrar-se. Não pode fique assim... Levante a cabeça! procure rir, sair, se distrair!" E como se contasse um segredo, continuou: " por que  não vai ao cinema assistir a uma comédia? Ou melhor, tem um palhaço aqui na cidade fazendo o maior sucesso: o palhaço  Giovanni. Dizem faz sorri como um milagre, consegue tirar  sorrisos de carrancudos e infelizes.
“Doutor, o senhor não está entendendo… Eu sou o palhaço Giovanni." confessou-lhe o paciente.

                                                                       *  *  *

Esse conto popular traz à tona  um antigo paradoxo: o cômico e o melancólico fazendo parte de uma só substância. São esses  personagens ambíguos que frequentam corriqueiramente o mundo das artes cênicas. As máscaras  que representam o teatro trazem essas cenas simultâneas, misturam personagens e ator, e num suposto contrassenso, aquele que provoca riso, é, alhures, um melancólico contumaz.   A competência para o  riso, sua disposição para o cômico,  fazem com que esses atores tenham extremo talento, pois no íntimo, a alegria ou a euforia são seus grandes personagens, incorporadas em suas almas vazias.

 Falo disso pensando na morte do ator Robin William, recentemente noticiada nas redes sociais. A pergunta que se faz: o que levaria uma pessoa tão, aparentemente, de bem com vida - especialmente vocacionado ao cômico - rico, no auge da carreira, se matar? há sempre uma ingenuidade em nossas perguntas, pois perguntamos ao personagem midiático e não ao sujeito Robin William. Nesse personagem que nos é inventado,  escapa um homem diferente, um deprimido, um dependente químico, um impulsivo, um infeliz - um homem que talvez passasse na rua sem ser percebido pelos seus admiradores. O suicídio desmascarou o personagem e trouxe de volta a aridez da pessoa . E a pessoa, pessoa comum e contingente, é um passível de todas dissonâncias da vida, incluindo, naturalmente, a capacidade de adoecer psiquicamente.

Postaram-se  publicações post mortem  sobre o tema da depressão e suas nuances, sua suposta epidemia, os preconceitos a ela relacionados, o descaso que os outros fazem dela. Vi também estatísticas alarmantes que relacionavam a "maldição" da depressão a miséria  suicida. Enfim, todas as verdades precisam ser ditas novamente para não serem esquecidas. E a verdade mais dolorosa, mais ardilosa e cruel, é constatar que parte da humanidade se mata.

Émile Durkheim, sociólogo ainda do final do século XIX, disse com pragmatismo, que apesar dos muitos casos de suicídio advirem de um quadro depressivo ou de outros transtornos psíquicos, esse argumento por si só não se basta. No seu entendimento, a depender de aspectos culturais e históricos, os deprimidos podem tentar mais ou menos contra sua vida. O que está em jogo são aspectos intrínsecos à formação social, como a sociedade se organiza. Um exemplo emblemático do pensamento de Durkheim está no fato de que, em períodos em que supostamente há maior risco de suicídio, seus índices caem - o exemplo clássico é o período de guerra. No seu entendimento, a guerra cria um espírito gregário no grupo social que o protege, temporariamente, do ato de se matar. A partir dessa ideia do sociólogo, que divide os grupos sociais em gregários/anônimos , pode-se chegar  a hipóteses que justificam os índices de suicídio, inclusive, os índices atuais.

Os solteiros se matam mais que os casados, os religiosos mais que os ateus, os profissionais liberais e autônomos mais que os empregados, os imigrantes mais que os nativos, desempregados mais que empregados. O que se constata nesses eventos é que esse aspecto social acrescentam condições de risco que vão alem da ideia de que apenas os transtornos psíquicos causadores de suicídio. Na verdade, quando  assistimos à notícias, como a da morte de Williams, tendemos a justificar o ato a um infortúnio momentâneo. No caso de Robin Williams,  pessoas falaram que ele se matou porque recusaram-lhe um emprego - improvável para o ato. 

As noticias que nos chegam trazem hipóteses superficiais. A amplidão de um ato dessa natureza leva-nos a uma infinidades de portas. Uma delas tentei abrir e vi, pelas frestas, o paradoxo do comediante melancólico (ou do suicida) que um dia nos fez rir.

Marcos Creder 

Um comentário:

cristiane menezes disse...

Outro texto dez! Caramba. Muito bom. Notei nas redes sociais que as pessoas não compreendiam como Robin William pode ter cometido tal ato. Só que percebi que elas estavam vendo o ator, e não a pessoa dele. Eu não o conheço, o que sei dele são inúmeros personagens irreais, ele como ser humano não atua. Isto me lembrou de um médico daqui de Pernambuco, um grande médico por sinal, não citarei o nome por respeito, e sei pela aproximação com o mesmo, ótimo contador de piadas, que deixa seus pacientes à vontade, chega a tirar medos, mas como pessoa, no seu eu, é depressivo. Lembro-me que muito ouvi perguntar, como isto é possível? Cristiane