domingo, 27 de abril de 2014

O último sonho de Gabriel




Jorge Luiz Borges disse que um livro não se inicia no primeiro parágrafo, ele já tem precedentes de outros textos. Senti-me perdendo um texto fundamental quando tomei conhecimento da morte de Gabriel Garcia Marques, pois nesse blogue comentei há quinze dias sobre um livro que havia lido há muitos anos, ainda adolescente, A Incrível e triste história de Erêndira e sua avó desalmada. Perguntei-me: O que me fez pensar  em livros de Garcia Marques  depois de tanto tempo?   (se  não me engano o último que li foi “Memórias de Minhas Putas Tristes”). Minha resposta: não sei, nem sei se saberei responder. De algum modo, minha despedida desse autor  já ocorria. Mas, não estaríamos diariamente nos despedindo das pessoas e das coisas da vida?

Gabriel Garcia Marques foi um escritor que, bem ou mal, marcou a geração dos anos 1970 e 1980 com textos bonitos, simples e, surpreendentemente populares - “Cem anos de solidão” e “Amor nos tempos do cólera” foram best sellers, algo impensável nos dias de hoje. Foi em meio a popularidade que muitos textos de escritores  latino-americanos, inclusive, anteriores a  Gabriel, foram-me apresentados. As tramas de  suas narrativas são instigantes, prende-nos à leitura, mantendo, contudo, as boas reflexões, estilo e erudição. Seus livros podem ser lidos de diversas formas, pois são leituras “polifônicas”, que não provocam aborrecimentos (parafraseando Marcel Proust). Essa "polifonia", se assim posso chamar, é admirável nos bons escritores populares. Sou simpático ao texto que entretém, que seduz, e que inquieta.

Embora seja com um dos maiores representantes do estilo Realismo Mágico, ao contrário do que se vem divulgando, Garcia Marques não criou esse estilo. Há precedentes - embora que com controvérsias - em outros autores latino-americanos. "Pedro Páramo" de Juan Rulfo pode se observar o Realismo Mágico se iniciando. Narra-se em "Pedro Páramo" a história de um sujeito que, depois de saber da morte da mãe, vai à cidade onde esteve quando criança. Lá  encontra seus desconhecidos e possíveis antepassados. A grande virada do livro ocorre quando se constata que as vozes desses ancestrais são fragmentos de falas do passado materno.  A  cidade, em realidade,  é um deserto metafórico que representa nos seus fantasmas a decadência de uma geração. Todos estão mortos.  Esse formato que transita entre o real e o simbólico caracteriza e semeia o Realismo Mágico. 

Se Gabriel não criou esse estilo tão latino-americano, não se pode lhe tirar o mérito de tê-lo consagrado.  Nos seus livros, assim como em Juan Rulfo,  o tempo se relativiza, as metáforas se corporificam e mergulham nos mitos populares. Há um conto que me provoca grande impressão, “O afogado mais bonito do mundo". Título estranho. Um corpo forasteiro e desconhecido é encontrado perto de uma vila, numa rede de pescadores. O corpo - corpo enorme - é, então, levado à vila para ser velado pela comunidade. As mulheres admiram, demoram-se e por fim, apaixonam-se pelo cadáver.  A ideia do corpo grandioso e forasteiro parecia ser o fetiche do carente e miserável lugarejo, onde até a própria morte era-lhe faltosa:  “A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas.”  

Comparo esse texto com “Erêndira” e percebo que há algo de melancólico nas narrativas de Gabriel Garcia Marques. Se há cartase, ocorre na compaixão com seus personagens. A morte, tema  frequente, é um rito bizarro, onde a vida é contingente. Estamos, como disse acima, nos despedindo diariamente uns dos outros e de nossas vidas.  Gabriel conta no prefácio dos “Doze Contos Peregrino” um sonho que sintetiza a metáfora da vida como eterna despedida. E com ele ( e dele) me despeço:


A primeira idéia me ocorreu no começo da década de setenta, a propósito de um sonho esclarecedor que tive depois de estar há cinco anos morando em Barcelona. Sonhei que assistia ao meu próprio enterro, a pé, caminhando entre um grupo de amigos vestidos de luto solene, mas num clima de festa. Todos parecíamos felizes por estarmos juntos. E eu mais que ninguém, por aquela grata oportunidade que a morte me dava de estar com meus amigos da América Latina, os mais antigos, os mais queridos, os que eu não via fazia tempo. Ao final da cerimônia, quando começaram a ir embora, tentei acompanhá–los, mas um deles me fez ver com uma severidade terminante que, para mim, a festa havia acabado. "Você é o único que não pode ir embora", me disse. Só então compreendi que morrer é não estar nunca mais com os amigos. Não sei por que, interpretei aquele sonho exemplar como uma tomada de consciência da minha identidade, e pensei que era um bom ponto de partida para escrever sobre as coisas estranhas que acontecem aos latino–americanos na Europa. Foi um achado alentador, pois havia terminado pouco antes O Outono do Patriarca, que foi meu trabalho mais árduo e arriscado, e não achava por onde continuar”.


Marcos Creder

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