domingo, 4 de maio de 2014

OS LIMITES DA PLENITUDE








Plenitude é uma palavra cujo significado nos remete a algo que está completo, inteiro, cheio, que atingiu a medida máxima. Eis, pois, um termo que facilmente podemos associar à perfeição. 


Ah! se fôssemos perfeitos e a vida idem. Teríamos todas as qualidades e nada teria nenhum defeito. Não haveria em mim nenhum desejo, pois não sofreria de nenhuma falta. Não traria sonhos e nem haveria de tê-los, afinal a perfeição se já atingida é a realização de todos os meus sonhos. Sequer adoraria algum deus, visto sê-lo, nem sobraria espaço interno para amar, pois estaria tão e interminavelmente saciável; e o amor é o alimento que a alma requisita quando tem fome. Não teria, inclusive, consciência do viver, já que a vida me seria perfeita e eu perfeito com ela seríamos um universo indissociável. Não me restaria esperanças nem lembranças, uma vez que o futuro seria tão exato quanto o presente e lá chegando tão igual quanto o passado. Duraria tão pra sempre que jamais idealizaria eternidades. E seria tão eterno e tão sem fim; e tudo seria tão eterno e tão sem fim que deixaria de apreciar a beleza que sempre lá estaria a ponto que perderia a condição de reconhecer o que é belo, pois tudo seria inteiro, contínuo e inacabavelmente belo. Nada caducaria, tudo permaneceria do mesmo jeito e coisa nenhuma haveria de ser transitória. Resignar-me-ia a um tempo que em sua indiferenciação não passaria. Ah! se fôssemos perfeitos e a vida idem seríamos todos imortais, e assim viveríamos a imortalidade do tédio. Pensando melhor, ainda bem que não somos perfeitos e a vida também. 

Freud, em seu texto "Sobre a Transitoriedade", escreveu que o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo e que a limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Afirma ele: "uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela". Talvez esteja aí um dos segredos do encantamento frente ao belo. Ele é curto, passageiro e diferente do que não é belo. E é por isto que eu penso e tanto penso. Devo todos meus mais importantes pensamentos à transitoriedade e meus sonhos e desejos à posteridade. E o que me agrada e me faz feliz é breve, então haverei de sorver do efêmero o que ele tem de rapidamente eterno. Ou como dizia Goethe "na plenitude da felicidade cada dia é uma vida inteira". 
Todavia não nos desgostemos porque jamais seremos plenos. Não é porque a perfeição não cabe ao humano que o humano não possa ser o mais pleno possível dentro dos limites e espaços que tem pra alcançar o seu próprio máximo. Não é, portanto, porque nunca serei uma pessoa perfeita que não possa ser uma ótima pessoa. Entre mim e meu topo ainda tem território. Minha cabeça ainda não tocou no meu teto.

"Um certo tipo de perfeição só pode ser atingido através de uma acumulação limitada de imperfeição", ensina o escritor japonês Haruki Murakami. Esta é a perfeição que podemos alcançar: o culminar do ser apesar de nossas imperfeições e limitudes. Se o humano é naturalmente imperfeito, podemos ser perfeitamente humanos. Não é implorando luas nesta Terra - como diz Fernando Pessoa - que podemos atingir a plenitude limitada do nosso ser. Há uma diferença entre a perfeição e a otimização. Enquanto na primeira queremos não ter falhas e defeitos, na segunda sabemos conviver com as mesmas e os mesmos tentando minimizá-los melhorando as virtudes. Uma vida inteira é pouca para se chegar lá, mas vivo-a na intensa busca de sempre cada vez mais me aproximar. 

Não é porque não podemos tudo que não podemos muito. E não é porque muita coisa não será realizada que não possamos realizar o que podemos realizar. Devemos procurar o realizável com igual intensidade como se deseja o que é desejável. Cada amanhecer de dia é dia de ser eu e vivê-lo continuamente no aperfeiçoar de mim. Minhas conquistas são feitas de derrotas, e sobre os escombros da perfeição derrotada edifico o melhor de mim para depois melhorá-lo. O céu não é meu limite. Meu limite sou eu mesmo. E se sempre penso grande, começo sempre pequeno. Minha alma, esta sim, é que não é pequena. 

A própria ideia de querer ser perfeito parte do reconhecimento de que somos de fato imperfeitos. É como igualmente constata René Descartes ao afirmar "como poderia eu entender que duvidava e desejava, isto é, que me faltava algo, se não houvesse em mim qualquer ideia de um ser mais perfeito, que me permitisse, por comparação, reconhecer minhas próprias falhas?". Sim, a ideia de um ser perfeito é humanamente necessária, não para sermos ou nos cobrarmos, mas para nos movimentarmos. A perfeição, nestes termos entendida como congênita ao próprio homem, talvez nada mais seja do que a hipertrofia do que se supõe ser o conjunto de nossas próprias qualidades. 
Cada um de nós tem potencialidades e capacidades a serem desenvolvidas. Atuar tais potencialidades, aflorá-las e maturá-las, em atitudes e realizações, é transformar potência em movimento e ato. Somos sementes que transitamos em um curto espaço de vida. Alguns arborizam e frutificam, outros não. É necessário, pois, romper as barreiras psicológicas que atrofiam nossas potencialidades, tomar posse de nossa própria maximização. E assim dizia Aristóteles que "nós nos transformamos naquilo que praticamos com frequência. A perfeição, portanto, não é um ato isolado. É um hábito".

"Toda perfeição é um defeito" (Voltaire). O homem perfeito não existe. O que há é o homem possível. Deixemos as promessas aos medíocres, eles vivem de sonhos. Sejamos o sonho que se corporifica, se carnaliza. Sejamos mais e sigamos em frente. Exploremos até os limites a nossa geometria. Façamos da nossa essência uma existência. Jamais nos contentemos com o satisfatório, afinal todos podemos ser melhores e aprimorar o que de melhor somos. Ou como expressava o santificado sacerdote francês São Vicente de Paulo: "a perfeição não consiste na multiplicidade das coisas feitas, mas no fato de serem bem feitas".

Evitemos, portanto, o que escreve Fernando Pessoa na voz melancólica de seu personagem Bernardo Soares ("O Livro do Desassossego"), em seu receio do futuro: "Estarei sossegado numa casa pequena nos arredores de qualquer coisa, fruindo um sossego onde não farei a obra que não faço agora, e buscarei, para a continuar a não ter feito, desculpas diversas daquelas em que hoje me esquivo a mim. Ou estarei internado num asilo de mendicidade, feliz da derrota inteira, misturado com a ralé dos que se julgaram gênios e não foram mais que mendigos com sonhos, junto com a massa anônima dos que não tiveram poder para vencer nem renúncia larga para vencer do avesso".

Por isso entendo que o melhor de mim 
está sempre no dia seguinte depois de mim.
Constantemente acordo para o amanhã.

Joaquim Cesário de Mello

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