domingo, 6 de abril de 2014

OS DOIS LADOS DA MOEDA

Toda moeda tem dupla face. O ser humano também. Os versos da música "Dentro de Mim Mora um Anjo", letra do poeta Cacaso, fala do anjo de boca pintada que mora dentro de nós e que vive montado em um cavalo que ele sangra de espora. Diz uma estrofe: "ele é meu lado de dentro, eu sou seu lado de fora". Quem já não se pegou brigando internamente consigo mesmo como se fôssemos dois? Quem já não disse "desculpe-me, agi sem querer"? Quem?


A questão da dualidade humana e suas contradições é por demais explorada pelo cinema, literatura, teatro e nas artes de um modo geral. Filmes como "O Cisne Negro", de Darren Aronofsky, ou "A Dupla Vida de Véronique", de Krzysztof Kieslowski; livros como "O Médico e O Monstro", de Robert Stevenson, ou "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde; e peças como "Woyzeck", de Georg Büchner, ou "A Alma Boa de Setsuan", de Bertold Brecht, são exemplos disso. A Psicologia e a Arte andam juntas no perscrutar dual da natureza humana e seu momento lusco-fusco.


O ser humano é por excelência uma dualidade antiética animal/cultura, desejo/moral, mamífero/sapiens. Em algum momento lá atrás na história genealógica da vida nos separamos dos nossos ancestrais primatas. Porém tal separação não nos eleva acima da natureza, pois somos animais como os demais animais, contudo não somente ou unicamente. Em algum lugar longínquo ficou o nosso "elo perdido", aquele que fez com que cada macaco ficasse no seu galho, isto é, os antropoides de um lado e os hominídios sapiens do outro. Fomos, assim, para a periferia da natureza e lá construímos a cultura transgredindo-a, porém deixando um pé na mesma. Quando somos bons chamamos de humanidade, quando somos maus de desumanidade, como se ambos os lados não fizessem parte da mesma moeda.


A natureza humana, ou o que comumente nomeamos de natureza humana, não é rígida e puramente institiva e repetitiva, mas sim maleável cuja forma do momento sofre influência direta do social, da cultura e da história. Somos uma espécie de protoplasma entre o líquido e o sólido. Somos capazes até de irmos de encontro com o mais elementar dos instintos, o instinto de sobrevivência. O ser humano é capaz de armar-se de bombas e se estourar. A ideologia, às vezes, suplanta instintos. 

É habitual falarmos de tal dualidade muitas vezes utilizando de recursos como o poeta Ferreira Gullar: "uma parte de mim é todo mundo/outra parte é ninguém... uma parte de mim é multidão/outra parte estranheza/e solidão". Mas não somos assim um ser constituído de camadas sobrepostas - isto serve como metáfora. Somos o que somos, ou seja, uma totalidade biopsicossoial. Somos os vários em um e o um em vários. Somos um antagonismo convivente e ambulante a suscitar interrogações. Somos contraditórios e incertos, um desconhecido de si próprio que se pensa conhecido, um erro em busca de ser perfeito. É bem provável que não viemos de um paraíso perdido, porém somos andarilhos perdidos em busca de paraíso, Vai lá entender essa coisa chamada de ser humano...


Carl Jung conceituou de Persona e Sombra, sendo a primeira a forma pela qual nos apresentamos ao mundo externo e às pessoas. É através da Persona que nos relacionamos e representamos nossos papéis sociais. Já a Sombra, para Jung, é o centro do inconsciente pessoal humano lá estão nossos mais reprimidos desejos, lembranças e tendências que são moral e egoicamente incompatíveis com a Persona e, por isso, rejeitados pelo sujeito. Sabe aquela parte da gente que a gente não gosta de pensar sobre ela? É algo por aí. É o nosso "lado oculto da lua".

Freud é outro que nos aponta uma possível raiz para tal dualidade. Em "O Mal-Estar na Civilização" discorre ele sobre a incompatibilidade entre a vida civilizada e a felicidade, visto que a vida civilizada pressupõe o interdito e o recalque dos instintos e das pulsões puras. Como diz ele: "“o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança". A agressividade, lembra-nos Freud, é uma disposição instintiva original e auto-subsistente. Amar ao próximo como a si mesmo, prossegue Freud, só pode ser conseguido mediante um controle sobre as pulsões agressivas.
O próprio mundo dos afetos a quem o ser humano é submetido a viver é amplo e complexo. Nosso amplo leque de emoções transitam desde os impulsos mais amorosos até os impulsos mais agressivos. São contrapontos que interagem entre si, lutam e se misturam. Na construção do humano estamos, pois, imergidos no antagonismos de forças opostas e, assim como a luz, a sombra e a escuridão compõe o dia, somos constituídos de paradoxos, antinomias e contradições. Nossa interioridade, indubitavelmente, é constituída de exigências mentais muitas vezes contrárias e opostas. A isto chamamos de conflito psíquico. Tais conflitos geram grande parte de nossas ações e movimentos, mas também podem resultar em paralisações e inércias. Tem gente que vive como que "congelado" e "estanque" como se correr o bicho fosse pegar e se ficar o bicho fosse comer.

Podemos ser bondosos, mas também podemos ser maldosos e vis. A condição humana transita por entre esses dois polos. Em "O Médico e o Monstro" escreve Stevenson que "a maldição do gênero humano foi a de que "esses ramos incompatíveis" ficassem fortemente amarrados um ao outro – que esses gêmeos polares vivessem em luta contínua no angustiado útero da consciência". Nossa argamassa é constituída de incongruências e sentimentos ambíguos. Isso não nos faz, em princípio, maus ou bons. Tudo em grande parte depende como lidamos com as nossas divergências internas. Não é porque somos feitos de opostos que os mesmo sejam para serem vividos apenas em conflito. Na opinião de Jung, por exemplo, alcançamos nosso verdeiro eu, nosso verdadeiro self, na integração e no equilíbrio de todos nossos aspectos. Não era igualmente a proposta freudiana de tornar o inconsciente em consciente? Não é por nos aperceber de componentes psíquicos desagradáveis em nós que nos tornaremos um monstro insano e tresloucado. Pelo contrário: melhor e mais amplamente nos conhecendo podemos controlar mais e melhor nosso ID. Em outras palavras, onde antes era ID que agora seja EGO. Não é, portanto, que por sermos contraditórios que tenhamos que nos contradizer e negar nossa "outra parte". Quanto mais auto-ignorantes somos, mais vulneráveis estamos à instabilidade e à neurose. Meu ser que se conhece e meu ser que não se conhece precisam é mais serem apresentados, pois como diz o poeta "na medida em que sou contraditório/descubro meus centímetros".

O filósofo e ensaísta português Agostinho Silva citava que "contradizer-me me dá segurança de que atingi a verdade possível". Quem em si nega ou não enxerga suas contradições, apenas se vê como que pela metade. Às vezes amo e às vezes odeio o mesmo objeto. Há momentos em que sou sincero, enquanto em outros sinceramente minto. Não me escondo apenas dos meus semelhantes, mas muito mais de mim mesmo. Tenho, como todos temos, uma dupla face: a do lado de dentro e a do lado de fora. Quem me vejo no espelho de mim não sou eu por inteiro. Reflito imagens seja para me distrair seja por temer ou fugir de mim. Talvez esteja certo Ferreira Gullar. Somos fundo sem fundo e "uma parte de mim, pesa, pondera/outra parte delira". Somos permanentes assim como súbitos. O pecado e o arrependimento dormem na mesma cama e sob o mesmo teto chamado alma humana.

Joaquim Cesário de Mello





Um comentário:

Anônimo disse...

Quando estou como partícula, recolho-me, num movimento de inércia impossível, e de proteção. Quando estou como uma onda, assombro-me. Abraço. Aquiles Simões.