domingo, 13 de abril de 2014

A índole do desejo



Somos criados num suposto mundo racional  e nos surpreendemos com eventos contraditórios, embora, estes sejam os mais corriqueiros da vida. Um texto - uma novela, um conto, não me lembro ao certo - de Gabriel Garcia Marques que li ainda adolescente, me fez pensar mais sobre isso: A  incrível e triste história  de Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Faz tempo que o li e, peço perdão aos leitores, pois posso trazer-lhes falsas recordações.  O texto narra a história de Êrendira, adolescente órfã  que, desatenta, provoca acidentalmente um incêndio na casa da avô, que a criara mais como serviçal que como neta. A casa se destrói por completo deixando as duas na rua e sem dinheiro.  A avó, enraivecida, torna-se credora da neta - uma dívida impagável de um dano irreparável. A jovem seria prostituída. Jovem e bonita, todos se compadeciam e desejavam Erêndira. Filas de homens se formaram - eram comerciantes, militares, velhos solitários, transeuntes, jovens tímidos -  para desfrutarem por alguns minutos do corpo de Erêndira. Um deles - cujo o nome não me recordo - rico, bonito e bom (enfim, o príncipe encantado)   se apaixona pela jovem prostituta. A paixão torna-se mútua e os dois resolvem  planejar secretamente uma vida  juntos,  longe, naturalmente, da prostituição e, em especial, da tutela da avó - a velha cafetina se habituara com o conforto que o corpo da neta rendia. Os dois, Erêndira e o jovem Príncipe,  planejaram, então, formas de se ver livre definitivamente  da velha, tramaram o seu assassinato. A avó era uma pessoa horrenda, rústica e cruel, e,  a sua morte traria uma agradável solução ao par de jovem e aos leitores, seria, enfim, o desfecho mais plausível para que tão dramático texto terminasse  com alguma alegria. A velha não faria falta ao mundo.  Na surdina, a dupla tentou assassiná-la de diversas formas, simulou-se acidentes supostamente fatais ou supostas mortes naturais. A senhora, no entanto, parecia imortal, sobrevivia ilesa a todos atentados. Não havia sequer veneno efetivo que a levasse à morte. Em cada tentativa fracassada, a angústia dos dois personagens elevava - cogitaram tratar-se de uma feiticeira. Mas eis que por insistência e perseverança da dupla, e para o agrado de todos que sonhavam com a felicidade do casal,  a velha, enfim, cai na desgraça da morte, sucumbe (penso que) depois de uma ruidosa explosão.   Desaparece. A novela parecia estar chegando ao climax, contudo, faltando ínfimas páginas para o desfecho, a hora do "felizes para sempre" não se efetivou. Erêndira, estabanada, ao constatar a morte da avó, sai porta afora, corre pelas ruas e, no destino, foge de tudo e de todos. Sequer olha para traz.

Que perguntas nos resta fazer diante do inesperado? Será que Erêndira segredava esse ardiloso plano? Os mais pragmáticas responderiam sim, e, acrescentariam algum comentário que desqualificasse a protagonista: má, egoísta, oportunista. Mas há outra hipótese: a de que Erêndira só se deu conta do seu desejo que só pôde emergir no momento da morte da avó. A morte descortinou e abriu janelas para novos horizontes do seu querer. Essa é a hipótese que eu defendo, levando em consideração que não apenas a personagem, mas todos nós, não sabemos ao certo o que desejamos.

Desejos, contrariando lógica racional, não obedecem as mesmas regras do nosso querer. Desejamos sem saber que desejamos, denegamos com frequência nossos desejos -  quantos disseram “eu não quero” e paradoxalmente se viram justamente desejando o "não querer"? ou pelo contrário, quantos disseram "eu quero", e não era bem isso que desejavam? Desejar muitas vezes revela o impensável, eventualmente o inaceitável, como se as palavras desejo proibido, caíssem num pleonasmo, e fossem condensadas sumariamente na palavra, única palavra, desejo. Que impensável é esse que não se revela? ou ainda  qual é a índole do desejo? se se explora os desejos mais escuros e escusos, poder-se-ia dizer que, ao menos, aqueles não revelados, não são muito cordatos. Obedecem a um regramento que estão em frequente tensão com o contrato social. O ser humano é dado a transgredir o que ele mesmo estabeleceu como regra. Se um dos mandamentos é não matarás, um ou outro tentará ir adiante e desafiar essa lei - em larga escala o não matarás é um denegação da condição humana - para os pesquisadores da pré-historia temos fama de assassinos. Há muito tempo ouvi um  psicanalista dizer que essa dialética do desejo/renúncia faz com que o próprio desejo se torne, enfim, um elemento sempre tendente a transgressão - o desejo tende a andar de mão dadas com as suas interdições. A maneira mais sublime de nos distanciarmos desse oráculo às avessas se estabelece com a criação artística. A arte faz do desejo uma metáfora do possível - observe-se que o leitor de Êrendira é conivente e também desejante da morte da velha. 

A índole de Êrendira é a índole da humanidade? Cabe aqui uma ponderação. Êrendira é uma abstração, é uma personagem inscrita (e escrita) na subjetividade de seu criador. Seu criador. Gabriel Garcia Marques, fez como todos fazemos, atenuamos os nossos desejos mais tacanhos em invencionices (a criação). O que salva, engrandece e transforma a humanidade está na sua capacidade de criar. A criatividade amansa nossas forças instintivas individuais tornando-as sociais. A criação sintetiza os nossos desejos entre o desejar propriamente dito e o impedimento. A criação revela uma possibilidade de enxergar, com alguma nitidez, o que se deseja.

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Gabriel Garcia Marques conta-nos outra história em outro texto: um padre ao tentar salvar a alma de uma jovem do demônio - com o sessões de de exorcismo - encontra a maldade, a doença, a angústia, o desatino que estavam na jovem, e em especial, nele mesmo. Entre os demônios, havia o mais avassalador: o desejo apaixonado do padre pela silenciosa personagem. O nome do livro: “Do amor e outros demônios”. Recomendo.


Marcos Creder