domingo, 20 de abril de 2014

ENTRE O SONHAR E O POSSÍVEL






Viemos dos sonhos de alguém: nossos pais ou de um deles. Para as gravidezes indesejadas ou não programadas às vezes o sonho pode ser um pesadelo. Todavia entre a descoberta de que se está fecundada e o parto passam-se meses, e até lá entre o saber-se grávida e o fim da gestação circulam fantasias, expectativas, temores e sonhos. Assim, já nascemos embalados pelo imaginário daqueles que nos cercam. E o que somos psicologicamente no início da vida extrauterina quando o sonho dos nossos pais ou substitutos se faz carne? Um amontoado desordenado de zumbidos e sensações. A mente humana não começa já conhecendo o mundo externo e a realidade. Não há nada lá fora, até porque ainda não se sabe que sequer há um lá fora. Um dia o homo sapiens que trazemos como potencial haverá de ser ato; porém no início nosso sapiens não é racional, apenas fantasmático, ou seja, somos primariamente um homo fabulus. Nosso psiquismo em suas qualidades originárias vive imerso em um oceano incomensurável de fantasias. A realidade, ou a interpretação que damos a ela, vem depois.
Judith Viorst, em seu livro Perdas Necessárias, diz que "crescer significa estreitar a distância entre os sonhos e as possibilidades". Em nossos mais autênticos sonhos podemos nos idealizar perfeitos e vivendo em um mundo plenamente feliz. Mas a realidade da vida é que ela é para nós um amontoado contínuo de conexões imperfeitas e inacabadas. Como conciliar então estes aparentes contrários? Como aprender a nos equilibrar entre ambos? Será que a realidade tem que ser sempre o oposto do sonho? Pra início de conversa sei que quando o mundo externo e a realidade invadem paulatinamente a mente humana temos a nossa primeira psíquica perda: a consciência ou a descoberta de que perdemos o útero e que não somos onipotentes e que não habitamos sozinhos a existência, bem como que nossos outros vizinhos da vida são seres separados de nós, cada um com seus desejos que não são exatamente os meus ou os seus. Triste sina essa a de acordar dos oníricos sonhos narcísicos e sair da caverna rumo ao brilho dolente e incomodante da luz. Este é, pois, o nosso destino humano: mudar de sonhos.
Não adianta sonhar ir à Júpiter. Não iremos. Contudo, podemos sonhar em ser astronautas. Podemos não conseguir ser, mas é possível, nem que remotamente. Há sonhos e sonhos. Se o fabular de nossa imaginação fosse apenas quimérico e inexequível e irrealizável, estaríamos ainda vivendo nas cavernas como nossos antepassados ancestrais. Um dia o homem desejou e devaneou voar. Embora sem asas, como os pássaros, voamos; basta comprar a passagem e ir ao aeroporto. Boa viagem.

Sonhando nos voltamos para dentro das nossas ilusões e criamos mundos imaginários. Os sonhos ocupam o espaço subjetivo do futuro. Com eles nos lançamos esperançosos para um amanhã que ainda não chegou com a crença de que chegará modificado pelo poder do nosso encantamento e idear. Concebemos, assim, o ainda não acontecido e saímos das cercanias do instante presente viajando para os instantes do por-vir.

Dom Quixote dizia sonhar o sonho impossível e buscar a estrela inatingível, e por isto lutou contra moinhos de vento. Sim, também sou como Miguel de Cervantes quando escreve "contento-me com pouco, mas desejo muito". Aspiro transgredir os espaço limitados dos meus contentamentos, assim como desejo a realização de todos meus sonhos. Porém reconheço em mim parcas aceitações. A mais sofrente delas é de que não verei muitos dos meus sonhos acordados. A maioria deles, talvez, nunca verão a luz do sol.

Bem jovem sonhei uma companheira e ter uma filha e amigos; ser psicólogo e professor; escrever um livro. Hoje tenho uma companheira, uma filha, amigos, sou psicólogo, professor e escrevi um livro. E o que me resta pro amanhã se realizei os sonhos juvenis? Almejo ser um melhor companheiro, pai, amigo, psicólogo, professor e escritor. Isto o que sou e continuarei a ser: um transeunte dos espaços entre o sonho e o possível. Não basta desejar ser e conseguir ser, é necessário permanecer sendo. O ser é infindo, ao menos quando não finda a existência. A vida inteira de um homem é o esforço em transformar potência em ato. E conservar. E melhorar. E continuar sonhando, pois o sonho é o desejo imaginado e somos humanos exatamente porque desejamos e desejamos porque nos falta. Todo homem é sempre um ser faltante. Falta-nos, inclusive, a realização plena dos nossos sonhos.
O poeta Ruy Espinheira Filho, em seu poema Aniversário, fala-nos que trazemos no peito a mesma fome e a mesma sede do menino e do rapaz: "o mesmo olhar perplexo/o mesmo/sem resposta/gesto crispado interrogando". Embora a noite avance e as janelas aos poucos se apaguem - afirma o poeta - o coração silencioso permanece iluminado. A vida, o mundo, a realidade e todas as adversidades não extinguem a insaciabilidade do sonhar. Ou como diz outro poeta, Fernando Pessoa, "de sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos". Ah, esses poetas!
   Vivemos, mesmo contrariados, na luta entre a realidade e o sonho, entre o possível e o impossível.

"Somos um sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a faculdade mitológica de idealizar todas as coisas. (...) Se fôssemos um ser definido, seríamos então um ser perfeito, mas limitado, materializado como as pedras. Seríamos uma estátua divina, mas não poderíamos atingir a Divindade. Seríamos uma obra de arte e não vivente criatura, pois a vida é um excesso, um ímpeto para além, uma força imaterial, indefinida, a alma, a imperfeição.
A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne e o Verbo". 
(Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos/escritor português)

Não, nem tudo é tão possível. Não podemos abraçar a lua, de fato. Podemos imaginar abraçando-a, porém. Nem todo desejo torna-se carne. Alguns sonhos têm o amargo destino de serem sempre somente sonhos. Outros não. Outros nos lançam à frente, além do agora. "Os melhores sonhos de todos são aqueles que nos põem a pensar e a mexer" já dizia o lisboeta Miguel Esteves Cardoso. Embora tenhamos o legítimo desejo de ir para Pasárgada, Pasárgada não existe fora de nós. Diversos são nossos sonhos, alguns encarnáveis e outros não. Se Descartes está certo ao afirmar "penso, logo sou", também não é errado dizer que "espero, logo sou". Há o que é próximo e há o que é distante. Mas também há o impossível. Como lembra Pessoa "o sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele". 

Se a vida em si mesma não é um sonho, os sonhos sustentam a própria vida. A nossa alma sonha e é insone, não dorme nunca. Para lá do sonhar eu posso ser quem ainda não sou, mas também só posso ser quem posso ser se sonhar. O sonhos nos move e viver é movimento. Sonhos parados não são sonhos, são recordações dos nossos incosumados. Quem sonha é expulso de si e avança. Quisera que todos meus sonhos fossem um dia realidade. Este é com certeza o maior dos sonhos. Exceto se formos, afinal, apenas um sonho de um sonhador maior que chamamos de Deus. Será?...

"a vida real só é atingida pelo que há de sonho na vida real".
(Clarice Lispector)

Joaquim Cesário de Mello

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