sexta-feira, 27 de setembro de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO

PSICOSE, VIOLÊNCIA & ARTE

A relação que se faz entre transtorno psíquico e a violência, ou o comportamento agressivo, é tema de muitas discussões, inclusive, esse é um dos pilares do estigma que se constrói nos acometidos de doenças psiquiátricas – doenças? Transtornos? Distúrbios? Há, na realidade, vários estigmas e eu acrescentaria que existem certos estigmas que se encobrem nos eufemismos – pergunto-me porque justamente na área de saúde mental o paciente tem que ser chamado de usuário? Em outras áreas da medicina o sujeito-paciente deixa de ser cidadão?

Voltemos, contudo, à violência. As estatísticas apontam que a grande maioria dos atos de violência ainda partem da “sensatez” e da normalidade. Estudos apontam que o índice de agressividade aumenta nesses “normais” nas situações em que utilizam substâncias psicoativas, álcool em sua maioria, mesmos sendo utilizadores ocasionais e não dependentes. O que faz, então, pensar que os psicóticos, os esquizofrênicos ou os paranóicos sejam agressivos e assustadores? Na verdade, crimes de violência acontecem todos os dias e poucos são noticiados, os que se tornam notícias são aqueles que tem alguma peculiaridade no implausível, ou são aqueles atos aparentemente injustificáveis e, é justamente nesse aspecto “bizarro”  que os transtornos psiquiátricos visitam as páginas de jornais.

Os atos agressivos dos psicóticos quando ocorrem – pude observar ao longo de alguns anos – são geralmente decorrentes de uma atitude predominantemente defensiva. Em geral, em situações de crise os pacientes se sentem acuados pelos seus objetos de perseguição , fogem, escondem-se, trancam-se e, eventualmente, agridem para se defender. Não descarto, contudo, a possibilidade de que ocorra agressividade por parte de algumas dessas pessoas. Ressalto que não é tão comum como o senso comum estabeleceu e numa eventual ocorrência, não significa que seja “para sempre” ou que a agressividade deixa de ocorrer apenas quando cessam os surtos.


Nos anos 1940 - 1950 perambulava pelas ruas do Rio de Janeiro um homem negro, alto e excêntrico, vestido de maneira desleixada. Ele visitava igrejas, principalmente, a igreja de Santo Antonio e lá, ou mesmo na rua, profetizava várias catástrofes apocalípticas que estariam por vim com palavras, muitas vezes, incompreensíveis. Diziam que esse sujeito teria sido expulso da marinha e que vivera algum tempo como empregado de uma residência, numa casa no bairro de Botafogo. Numa de suas andanças, por um motivo desconhecido, mostrou-se verbalmente agressivo com as pessoas que passavam em via pública, e naquela ocasião, e por essa razão, foi “recolhido” para a colônia Juliano Moreira, famoso manicômio carioca. Artur, esse era seu nome, ficou internado por incontáveis anos – até resto de sua vida. No manicômio, tornou-se mais agressivo – ou já seria? –, e por essa razão, freqüentou várias vezes solitárias, celas, e fora contido por faixas imobilizadoras e isolado dos demais pacientes. Quanto mais se tentava conter, mais Artur explicitava a agressividade. Muitos pacientes ou mesmo funcionários o temiam e tinham um contato distante, cauteloso, inclusive, os visitantes e estagiários eram advertidos sobre sua periculosidade.


Num determinado momento de sua internação, na cela forte, desfiando fios de sua própria roupa, Artur começou a confeccionar estruturas bizarras que se assemelhavam a pequenas maquetes “embalsamadas”, estruturas com linha e textura bordadas à mão, somadas a outros objetos imprestáveis – latas, colheres quebradas, pedaços de cano, tábuas etc –  a harmonia entre esses objetos construíam estruturas esteticamente interessantes. Artur, daquele momento em diante, começara a construir o que denominou o “Dia do Juízo Final” e, assim como Rodin que fez as “Portas do Inferno” inspirado em Dante, iniciou a longa construção de uma produção artística. Artur acreditava que estava construindo um novo mundo e que as pessoas que seriam salvas – médicos, psicólogos, enfermeiros, auxiliares técnicos, pacientes, visitantes – tinham que deixar seus nomes escritos naquelas estruturas. Na construção dessas instalações eram utilizados vários utensílios domésticos que seriam úteis para o mundo da “salvação”.  Artur trazia de volta, em novo formato, o mito de Noé, mas ao contrário da narrativa bíblica, não haveria inundações, apenas um “fim” e objetos e pessoas a serem salvos. Sentia-se um ser grandioso, não era apenas um profeta ou um líder, era mais que isso; numa entrevista feita para um documentário, o jornalista o teria perguntado se ele teria visto, em alguma ocasião, Jesus Cristo, Artur foi objetivo: “eu não, mas o senhor está olhando para ele.” 

Diariamente produzia seu mundo artístico no que resultou em várias obras de artes que, inclusive, fizeram parte de exposições na Escandinávia e na Alemanha. Mantos, instalações, maquetes, painéis compreendia parte do seu acervo. Para Artur, no entanto, nada daquilo era arte no sentido simbólico da palavra, era, enfatizava, realidade, um ofício salvador, missionário, estava conservando e colhendo arduamente todas as coisas úteis do velho mundo.  Com o passar dos anos seu comportamento violento foi cedendo e dando lugar as diversas construções artísticas. Mas teria uma coisa haver com a outra?  A arte teria dado lugar a agressividade? A arte teria dissolvido a violência?


Conta-se que certa vez um militar alemão perguntou ao pintor Pablo Picasso ao se deparar com o quadro denominado Guernica (que retrata uma passagem da guerra civil espanhola – um bombardeio alemão sobre a cidade que dá nome ao quadro): “o senhor fez isso?”, indagou. “Não,” respondeu o pintor “foi o senhor quem fez”.

A história de Artur Bispo do Rosário e a resposta de Picasso, de algum modo, leva a reflexões diversas: de que a arte tende a  arrefecer ou arremessar os impulsos mais destrutivos e agressivos, de que a arte denúncia o humano e o desumano, de que a arte nos consola num momento de dor nos explicitando, paradoxalmente, o tema doloroso, de que a arte  nos elevaria ao sagrado ou nos desceria ao profano. Enfim, a arte vem para se queixar e seres humanos são queixosos, são insatisfeitos. A violência vem igualmente, nos seus atos, se queixar dessas insatisfações.  Os artistas se queixam com arte. Que fez Artur Bispo, então? Schiller responderia: “É preciso recorrer à arte quando a natureza é avara”.

Originariamente publicado em 05/08/2012

Marcos Creder

2 comentários:

Unknown disse...

A arte tem muitos poderes... Um deles, certamente, é traduzir sentimentos ou vivências de seu autor. Talvez, através de tal tradução, venha a suposta ideia de ser compreendido diante da expressão (materializada) de seus pensamentos, convicções, sentimentos e etc., o que possivelmente o faça menos agressivo. Posto que, sua “fala” está sendo levada para o “outro” e, de certa forma, este se fará “ouvido”, o que o levaria ao princípio: ser visto como ser humano, capaz de uma razão, que os que dizem tê-la, desconhecem. Texto e reflexões brilhantes. Beijos!!!

Cristiane disse...

Há um documentário chamado O poder da arte pela BBC. No episódio sobre Pablo Picasso, há uma dramatização desse diálogo. “o senhor fez isso?”, indagou. “Não,” respondeu o pintor “foi o senhor quem fez”.
http://www.youtube.com/watch?v=sh70SiwjNNw