domingo, 15 de setembro de 2013

ESPELHO, ESPELHO MEU





      Ah, a beleza! Como dizia Vinicius de Moraes “as feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. E o que é beleza?, pode-se perguntar alguém para logo responder que é uma questão subjetiva e conceitual. É verdade, afinal a ideia de beleza muda de lugar para lugar, de época para época e de pessoa para pessoa. Em seu oposto, Umberto Eco publicou seu monumental livro sobre a História da Feiura.
                Deixando de lado tal discussão e suas filigranas, beleza é uma experiência psíquica que está relacionada à percepção e aos valores. A beleza – ou a ideia que temos dela e o valor que damos a ela – tem seus efeitos na representação que fazemos de nós mesmos, afinal a representação que a pessoa faz de si é o que lhe dá identidade, autoestima e autoconfiança.
                O Self humano sofre implicações provenientes do meio externo e de suas pressões. Não é difícil vermos isto na intensificação do culto ao corpo e da imagem que sofremos diuturnamente através da mídia e dos padrões de beleza por ela ditados. Vivemos tempos onde a aparência parece predominar. Guy Debord escreveu já em 1967 seu mais aclamado livro A Sociedade do Espetáculo, onde destaca o autor ser a sociedade contemporânea uma sociedade e uma cultura espetaculistas. E em um cenário de valorizações narcisistas como o atual, a beleza passa a ser um valor social estimado que muito pode determinar o sucesso ou o fracasso do individuo.
                Se o corpo fala, como já escreveu Pierre Weil lá pelos meados dos anos 80, então o corpo é um grande comunicador do que se passa em nosso mundo interno, principalmente nos grotões obscuros da alma humana. Podemos até afirmar a existência de, no mínimo, dois corpos: o corpo físico e o corpo psicológico. O corpo psicológico compõe a fantasia humana sobre si e seus ideais. Muitas vezes os dois corpos são incompatíveis, isto é, seja porque o indivíduo se vê gordo, enquanto o espelho lhe mostra magro (anorexia), seja porque o desejo do corpo idealizado não corresponde a realidade do corpo físico, por exemplo.
                A imagem que se tem do corpo é uma representação psíquica que se tem do corpo físico. Tal representação não se resume tão somente à imaginação, mas também às sensações e aos sentimentos. Inegável, portanto, a importância da representação mental do corpo para o bem estar subjetivo humano. O equilíbrio e a harmonia interna é muito resultante dessa relação indissociável: mente e corpo.
                Ah, esse “admirável mundo novo”! Nunca dantes se viu uma procura tão grande (diria excessiva) por cirurgias plásticas como atualmente. Não apenas pelos avanços da cirurgia plástica em si, mas muito também por vaidades exacerbadas e por mascaradas psicodinâmicas patológicas da alma humana. Busca-se cada vez mais uma estética não natural, talvez revelações da não aceitação de si mesmo por detrás do corpo natural. Nossas morfologias não são suficientes e “tudo vale a pena quando a alma não é pequena” (embora esteja aqui me valendo de Fernando Pessoa para outros fins ou outros ângulos). É, a perfeição virou sinônimo de necessidade. Porém, pode ser que tudo do que estou pensando seja nada, e que este novíssimo texto que escrevo já tenha nascido datado. Vai ver que sou um cara careta, um verdadeiro jurássico. Pode ser que esteja eu, cá aqui com meus botões, sonhando sonhos de décadas passadas, e que esteja vendo neuroses e psicopatologias arcaicas em situações reconhecidamente saudáveis nos dias que hoje se seguem. Vai ver que no fundo é o danado do meu complexo de Édipo mal resolvido querendo me levar para culturas e épocas que já não existem mais. Vai ver... Mas que o negócio tá parecendo coisa de doido, lá isso tá.
                Falando sério (ou melhor, continuando a falar sério) essa massificação crescente das cirurgias plásticas parece ter estrita relação entre a baixa autoestima e a cultura do narcisismo. Tem pessoas e buscam perpetuar a juventude (ou recuperar a perdida), já outras querem ser outra pessoa (como se mudando a embalagem se mudasse o conteúdo). Evidente que há situações e situações, inclusive aquelas em que há problemas psicológicos envolvidos. A procura pela beleza perfeita (isso lá existe?) a todo custo e a todo preço, principalmente quando tal comportamento é obsessivo, transforma-se em patologia, entre elas a dismorfobia.
                A dismorfobia, também conhecida como Transtorno Dismórfico Corporal (F45.2 do CID-10) é caracterizada como uma preocupação exagerada com defeitos na aparência, seja tal defeito ou defeitos pequenas anomalias físicas, sejam defeitos imaginários. Qualquer parte do corpo pode ser motivo de preocupação disfóbica, tais como os olhos, cabelos, nariz, queixo, seios, genitais, pernas, etc. A dismorfobia trata-se de um transtorno da percepção ou valorização corporal ou, em outras palavras, uma síndrome da distorção da autoimagem.
                Dismorfia, em grego, significa “feiura”, e subjetivamente uma pessoa dismorfóbica, embora aparentemente esteja tentando fugir da feiura com que se vê no espelho, o que ela psicologicamente está muitas vezes tentando é fugir da “feiura” de dentro, isto é, das suas próprias e inevitáveis imperfeições humanas.
                Psiquiatricamente a dismorfobia encontra eco no TOC, todavia psicológica e psicodinamicamente é um transtorno associado ao narcisismo. É como se o Self convivesse aprisionadamente com o objeto mau dentro de si, e ficasse ali como que meio preso entre a infância e o infantil. É uma espécie de criança que não cresceu, devido a precariedade com que elaborou o seu narcisismo primário.
                Sabe aquela velha historinha infantil do Patinho Feio? Pois é, em sua feiura imaginária é como se o sujeito estivesse o tempo inteiro se dizendo: “o patinho feio c’est moi.”. Ou alguém tem alguma dúvida que por detrás de toda patologia funcional não se encontra uma baixo autoestima?
                E em meio tantas clínicas estéticas, tantos anabolizantes e tantas cirurgias plásticas o corpo da pessoa vai se tornando – como bem diz Le Breton – um “corpo rascunho”, aquele que é esculpido e desculpido pela indústria da saúde(?) e que é modelado e remodelado pelo seu “proprietário”, sempre em busca de um modelo ideal que é exatamente o contrário do que se é realmente.
                O “espelho, espelho meu” da história da Branca de Neve não está aqui a se perguntar se há alguém mais bela ou mais belo do que eu; mas sim a se indagar sofridamente se há alguém mais feio do que eu. E de soslaio vê no espelho do vizinho a beleza idealizada, enquanto no seu espelho só enxerga a feiura imaginária.

Joaquim Cesário de Mello

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