domingo, 8 de setembro de 2013

A LIRA CIENTÍFICA




Há sempre uma discussão no meio acadêmico de que o texto científico tem que se afastar das “imprecisões” e das prolixidades do texto da literatura ficcional. A alegação é simples: deve-se repassar uma ideia, um pensamento, ou como dizem, uma “questão”, da maneira mais objetiva possível, livre das ambiguidades e as alegorias da prosa literária. Suponho que quem pensa na literatura  dessa maneira, certamente teve muito pouco contato com esse tipo de texto, ou se teve foi naqueles remotos períodos em que éramos compulsoriamente obrigados a cumprir tabelas com o professor de literatura ou de português do ensino médio.   Saímos daqueles tempos com um pensamento: Ciência é verdade, literatura é  mentira (em geral uma mentira de boa índole).



Fui a uma livraria a procura de um livro e encontrei outro. Na verdade eu trouxe os dois, mas o segundo trouxe por acaso e, confesso li primeiro. Por quê? Quando eu compro um livro eu costumo folheá-lo e observar umas palavras, umas frases avulsas e, não sei se por sorte minha ou do livro, eu li a seguinte passagem: “Pois não há contradição radical entre a Sociologia e História, mesmo quando a História deixa de ser de revoluções para tornar-se de assombrações”. Esse livro foi editado pela primeira vez em 1955.  Autor: Gilberto Freire, óbvio; título: “Assombrações do Recife Velho”. Posso dizer que ao ler essa frase, que se encontra no prefácio da 2ª. Edição, já estaria por si só, satisfeito e poderia sem pestanejar fechar o livro e deixá-lo na prateleira. Com essa frase tudo que viesse depois seria dejá vù, ela responde tudo que está no livro. A frase pagou o volume, pois, de algum modo, falar de assombrações da maneira como foi falado provoca várias discussões sobre “o científico”, a produção do texto científico. Mas Gilberto Freyre surpreende. Trata-se de um livro simplesmente fantástico. Um trabalho de pesquisa folclórica, sociológica, como queiram falar, que certamente seria recusado em qualquer projeto acadêmico atual por se tratar de um trabalho por demais reflexivo, digressivo e de frases “imprecisas”. Como falei, hoje se observa que os pesquisadores se transformaram em operários das palavras pragmáticas e do texto enfadonho, inclusive, observa-se isso na própria literatura. Dizem os críticos: “uma linguagem seca, econômica, enxuta etc.”. Gilberto Freyre me fez esquecer esse sectarismo, deixou-se caminhar – porque não? – nas frases bonitas, caminhar nas descrições cênicas oitocentistas e caminhar na ironia, sutil ironia. Penso que nesse texto, a história não é simplesmente contada, mas experimentada – a história perde o sentido de temporalidade, do remoto passa-se ao atualizado. Enfim, já fui longe demais… Acredito que Gilberto Freyre, ou sua assombração, com toda falta de rigor científico, ainda pisoteia as teses que mofam nas prateleiras das universidades e reedita aquele clássico axioma de Barthes: “saber com sabor”.

Penso que na “Poética”  Manoel Bandeira apontava para os dissabores da literatura de sua época mas podemos reportar a todo texto burocrático dos tempos contemporâneos. vejamos esse trecho:



Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o

cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

(...)

(POÉTICA -Manuel Bandeira)





Marcos Creder

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