TODO PSICOTERAPEUTA É MULHER
Somos seres biologicamente divididos em dois sexos: macho e fêmea. Já socialmente somos construídos a partir de dois gêneros distintos: feminino e masculino. Tal construção, por sua vez, se realiza mediante a dinâmica das relações sociais, afinal os seres humanos, ao menos os humanizados, se constroem em relações com outros seres humanos. A pessoa que habita cada indivíduo é, portanto, em parte, uma encarnação das relações sociais.
O conceito de gênero é prestável para aclarar muitos dos comportamentos dos homens e das mulheres em uma dada sociedade. Sim, há diferenças entre gênero e sexo. Todavia deixemos a diferença sexual no momento de lado, visto que são diferenças que estão em nossos corpos, seja em suas externalidades, seja em suas interioridades. Enfoquemos, pois, a alma, ou melhor, o psiquismo humano que constitui a personalidade e a maneira de ser e de se estar no mundo e na vida.
A alma ou psiquismo humano tem assim sua dupla face. A imagem como ela se vê enquanto Eu e se identifica, e uma outra que a complementa e que se encontra como um Não-EU, isto é, por detrás do próprio Eu. A consciência masculina tem, pois, sua contrapartida em um anima, enquanto a consciência feminina, por sua vez, tem sua complementação em um animus.
Masculino e feminino, dois aspectos de um todo. Sem fusão, nem confusão. Convencionamos caracterizar como masculino qualidades psíquicas e habilidades tais como: racionalismo e pensamento instrumental, objetividade, maior aptidão motora, orientação espacial, logicidade; enquanto o feminino é caracterizado como sensibilidade, intuição, comunicação emocional, fluência verbal, entre outros.
Venhamos e convenhamos, não se necessita ser homem ou mulher para ter tais qualidades e habilidades acima citadas. Basta ser humano. Qualquer ser humano é ou pode ser sensível, empático, racional, lógico, intuitivo, observador, analítico, paciente, objetivo e subjetivo. Muitas vezes é só se permitir. Outras, desenvolver.
Qual psicoterapeuta, para o bom exercício de sua função, não tem uma percepção mais aguçada das coisas, isto é, sensível? Como auscultar a alma humana sem o se usar a empatia e a dita “inteligência emocional”? Como lidar com sentimentos e aflições alheias sem o tirocínio das próprias emoções em sua habilidade de escutar as modulações e sutilezas emotivas do outro, muitas vezes imperceptíveis aos olhos empíricos do rosto, mas não aos olhos da alma? Que psicoterapeuta consegue navegar no mundo interno de alguém sem a bússola do feeling? Que psicoterapia existe, de fato, sem a calorosa responsividade acolhedora de uma escuta introspectiva e nutriente que possibilita ao cliente um espaço de sustentação psíquica e interpessoal? Afinal, que psicoterapia é essa que desleixa, em nome da rigidez objetiva e racionalista em excesso, o mais importante de tudo: olhar o outro a quem chamamos de paciente/cliente com amor e consideração? Há de se amar, respeitar, aceitar e tolerar, porém com compreensão, estabilidade e firmeza. Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás.
É no diálogo que se faz a escuta psicoterápica. Uma escuta que traspassa os limites da audição e do ouvir, afinal são tantas as comunicações, ao princípio inaudíveis, que flutuam nas entrelinhas discursivas de um setting psicoterápico. É ali que a intimidade se desnuda gradualmente em narrativas impregnadas de sentimentos, sonhos inconsumados, dores, ambiguidades e antagonismos. É ali onde no timbre das emoções mais recônditas e impensadas que emerge uma pessoa antes ocultada pelas inibições e pelo receio de se expor ao desconhecido. Recriar-se nunca é tarefa fácil, pois implica trocar o sofrer repetitivo e familiar da neurose pela dor saudável de simplesmente existir além das cercas. Abrir guarda-roupas e encontrar esqueletos requer tempo, o tempo psicológico da expressividade e da liberação rumo ao crescimento.
Todo bom psicoterapeuta é feito uma árvore que proporciona a sombra e que abriga e nutre. É como um seio que alimenta e um colo que acolhe, protege, sustenta e aquece. É como uma mãe que materna e fortalece seu filho para o vindouro instante em que ela própria se transforma em pai que auxilia o mesmo filho a se lançar no mundo e na vida sem mais necessitar de si. O escutado, assim, toma sua feição com autonomia, autoconfiança e mais autoestima.
Se ser feminino representa aconchego, afeto, intuição, sensibilidade, comunicação sentimental, feeling, introversão, compreensão e reflexão, então todo psicoterapeuta é principalmente feminino. Claro que não somente, pois se ser masculino representa pensar pragmaticamente, instrumentalizar, agir, e objetivar, então todo psicoterapeuta são ambos. É na dualidade da alma que a alma escuta, interage, fala e faz frente psiquicamente à aflição psíquica do outro. Ou como ensina o taoísmo no tocante ao Yin e Yang, é no equilíbrio dinâmico das forças complementares que surge a mudança e o movimento. Não é parado que se cresce. Parado apenas se envelhece.
“Ser um homem feminino/ não fere o meu lado masculino” (Pepeu Gomes). Em psicoterapia, assim como na vida, exceto na cama e no espelho do banheiro, sou andrógeno.
(originariamente publicado em 05/06/2012)
Joaquim Cesário de Mello
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