sexta-feira, 24 de maio de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO

                                               

O AZUL POR DETRÁS DA NOITE

O azul se foi engolido pela enorme boca negra da noite. A cidade, como que em festa para esconder o medo, clareia-se outra vez derramando suas luzes pelas calçadas e as pessoas nelas. O dia agora reinventado no sumiço do sol é tão elétrico, químico e falso quanto tudo o que habita e reside no ventre da noite. A artificialidade brilhosa e fluorescente e a luminescência piscante das ruas confundem-se com a multidão de vampiros que vagueiam por entre bares e cantos sugando ilusões. Iluminada, a noite desaba inteira e fogosa sobre a cabeça da cidade.

O barulho da sirene da ambulância passageira interrompe o prolongado cochilo, acordando-a. Às escuras a casa parece inexistir e com ela suas recordações, embora permaneça lá e meticulosamente arrumada como antes estivera. Temendo enxergar-se na impossibilidade de ver, tateia o relevo da parede e suas imperfeições em busca de interruptores. Mais rápidos do que um pensamento retornam a ela os objetos, os móveis e todas as coisas com as quais reafirma sua memória de décadas. Tudo lembra épocas e pessoas ausentes ou que também se foram como se toda a casa fosse feita somente de azul.

Logo se percebe sozinha em meio ao silêncio de suas histórias - não há mais a ruidosa algazarra dos filhos a encher os espaços de coloridos sons azulados. Ele ainda não está: o vazio da poltrona ao lado em frente ao aparelho de TV denuncia a costumeira demora, porém tem ela ali, como eternamente tivera, a lerda certeza do seu impreciso retorno. Conhece-o bem após tantos anos que é sabedora das repetidas impontualidades do seu homem de meio-século. Vê-lo chegar sobrevivente das ruas fora tarefa de sua vida inteira, e com resignada aceitação destínica recolhia, como ainda recolhe, as paisagens em suas roupas ao cesto na lavanderia. Jamais houvera ele de conhecer notícias de suas inquietas insônias. Chegasse cansado, bêbado ou triste sempre a encontraria em dissimulados sonos de onde, através dos cerrados olhos, mirava a madrugada que dormia entre os dois.

Para passar o tempo, o tempo da espera e da colheita, rezava aos santos inúmeras preces aprendidas de sua mãe, assim como sua mãe aprendera de sua avó e esta da avó desta e ela de seus outros ancestrais (o terço e a novena eram-lhe assim ecos de vozes quase medievais). Deus lhe vinha de tão distante, de remotas eras herdadas muito antes das caladas bocas já mortas nos retratos espalhados por toda a casa. Lá, nos dias primordiais em que se encontram enterradas sua infância e mocidade, rosnam e ladram os nomes que a fizeram de barros e água, como as frágeis argilas e gessos dos moldes dos seus santos. Incontáveis ave-marias e padre-nossos a separam do seu início e do seu término.

Uma fina garoa molha e esfria a noite. Pelo vidro umedecido da janela espia preocupada o caminho murado e arborizado da volta. Ele, como de comum e habitual, saíra sem guarda-chuva ou capa. Prepara-lhe o pijama sobre a cama e debaixo dela os chinelos de couro com que o presenteara em suas bodas de ouro. Separa as toalhas inusadas e perfumadas de amaciantes de roupa e aquece a sopa para que ele ao chegar a tome ainda bem quentinha. Arruma sobre a mesa pratos, talheres e copos, dispondo em sequência os compridos: primeiro os brancos e em seguida os rosas, os marrons, depois os amarelos e por último os azuis, como quem prepara carinhosamente arco-íris. Não precisaria falar para ele o tamanho da imensidão de seus afetos, apenas o banharia de álcool para que não apanhasse gripe, servindo-lhe um chá de alho e limão para, após, deitar-se à cama fingindo-se dormir.

Quando ele chegar, seja de onde vier, a encontrará com a mesma inesquecida ternura como se seu homem viesse de cinquenta anos atrás, trazendo-lhe de volta, em seus grandes olhos esbugalhados, o azul de um imenso e ilimitado azul, tão azul que espantaria de vez e para longe toda aquela prolongada noite.

(ORIGINARIAMENTE PUBLICADO EM 17/09/2012)
 

Joaquim Cesário de Mello



Nenhum comentário: