Em meados da década passada escrevi esse versos iniciais do poema que titulei "Enquanto Leio Kerouac":
A vida
continua indo, amor
enquanto
leio Kerouac
ou
assisto filmes na televisão
esperando
o salário ao final do mês.
Hoje, nos umbrais da velhice recém-chegada, entendi o que disse o poeta espanhol Antônio Machado ao versar que "caminhante, não há caminho, se faz o caminho ao andar". Sim, como expõe o poema Cantares são as nossas pegadas o caminho e nada mais. E tudo, tudo mesmo, estava ali tão perto de mim e nos entremeios dos meus livros, músicas, filmes, cenários e paisagens, quase imperceptíveis devido aos meus alumbramentos pelo brilho indiferente das estrelas. Cantou Elis Regina: "vi tanta areia, andei/na lua cheia eu sei/uma saudade imensa/vagando em verso eu vim [...] Já fiz a guerra por não saber/que a terra encerra o meu querer/e jamais termina meu caminhar/só o amor ensina onde vou chegar/(por onde for quero ser seu par)". Talvez por isso continuei no meu poema acima intuindo:
A vida continua indo, amor
sem mim
sem você
sem ninguém
afinal é próprio da vida se ir
deixando aqui sempre nós
ou lendo livros ou vendo filmes
no aguardo do próximo final de mês.
Não foi o próximo mês que me chegou. Foram os próximos e derradeiros anos que espero ainda alcançar. Será que seis décadas coisa algum me ensinaram? Foram apenas anos de subsistências e nada mais? Eu, justamente eu, que "sou rebelde/porque o mundo quis assim"? Não, minhas tamanhas insurgências e amotinamentos não me foram vãos. Não tornei-me idoso pra cansar. Tornei-me mais velho culto e literato para me preparar para a mais fascinante das revoluções: a inovação de mim.
Durante decênios busquei assanhadamente ser feliz. Encontrei instantes alegres e aprazíveis, momentos doces e fortunados. Tive meus átimos de certa felicidade, mas igualmente períodos de infelicidade. Felicidade não é um lugar, pois a vida é cheia de paragens e vacuidades. Desisti, pois, de procurar ser feliz. Transformado pela impossibilidade de locar meus tantos e incontáveis desejos, passei, então, a buscar ser tranquilo. E hoje, quanto mais tranquilo me encontro, mais me sinto feliz. Talvez a felicidade não seja um fim em si mesma, mas uma consequência de uma alma menos desassossegada. Bem sabia milenarmente o grego Epicuro que entendeu que "nada é suficiente para quem o suficiente é pouco". E assim como ele, afastei-me do frêmito agitado das ruas, da inutilidade das conversações inúteis e do ruído ganancioso de quem busca glórias e louros ou apenas sobreviver sob o sombrear da subserviência e do medo.
Recolher-se não é afastar-se. Ao habitar a vida que me cerca não insulei-me do continente das metrópoles e dos mercados. Embora transite menos nas calçadas agitadas e nas arenas das batalhas dos novos Polinices* e Étéocles*, percorro-as com olhares de visitante, contemplando seus panoramas e seus vincos, sorvendo o máximo que puder esse deslumbrante espetáculo da vida.
Por muito e bastante tempo andarilhei por veredas do mundo na sofreguidão em viver. Agora que me sosseguei no jardim das minhas metragens existo saboreando a passagem suave dos minutos, a lentidão iluminada dos segundos e o sussurro murmurante das horas undécimas. Despeço-me, pois, dos sentimentos externos pra aceitar plácido o fluir da vida, pois, assim como Sêneca, para mim cada dia tem a duração de uma vida inteira.
Por muito e bastante tempo andarilhei por veredas do mundo na sofreguidão em viver. Agora que me sosseguei no jardim das minhas metragens existo saboreando a passagem suave dos minutos, a lentidão iluminada dos segundos e o sussurro murmurante das horas undécimas. Despeço-me, pois, dos sentimentos externos pra aceitar plácido o fluir da vida, pois, assim como Sêneca, para mim cada dia tem a duração de uma vida inteira.
Hoje já não espero salário ao final do mês
"Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura..."
(Alberto Caieiro/Fernando Pessoa)
(*) Segundo a mitologia grega Polinice e Etéocles são filhos de Édipo e Jocasta e irmãos de Antígona.
Joaquim Cesário de Mello
Um comentário:
Incrível e profundo.
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