sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O DESEJO DO LOBO


   

“Devemos considerar que a felicidade da vida não consiste no repouso da mente satisfeita. A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo.... Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte”.
           
                As palavras acima não foram proferidas por nenhum psicanalista ou psicólogo, sequer por alguém no século XX ou século XIX. Tais palavras foram ditas por um homem que nasceu e viveu entre os anos de 1588 e 1679. Quem? Thomas Hobbes. Hobbes, além de matemático à sua época, foi também teórico político e filósofo. Sua obra mais conhecida é o LEVIATÃ onde tece suas principais ideias não somente quanto ao papel do estado, mas sobre a natureza humana. Considerando ser a condição natural humana egoísta, movida pelas paixões e impelida em busca do atendimento de seus desejos de qualquer maneira, entendia que só com a criação de uma força maior (Estado) é que os homens poderiam ser regulados para viverem agregados e em sociedade. Vem dele sua mais famosa afirmação:  homo homini lupus (o homem é o lobo do homem).
                A contínua marcha do desejo nos coloca no centro da questão humana: sua permanente insaciabilidade. Embora separados por cerca de dois séculos, Hobbes e Freud se encontram. Enquanto o primeiro enfatiza a necessidade do Estado para conter a fúria narcisista dos desejos humanos, o segundo enfatiza a necessidade de um Ego (auxiliado por um superego) para igualmente conter os impulsos do Id.
                Minha primeira aproximação com o universo teórico-especulativo de Hobbes foi no iniciar de minha segunda década de vida, quando fazia a faculdade de Direito e cursava a disciplina Teoria Geral do Estado. Lá meus ainda ingênuos olhos entraram em contato com a análise da condição primitiva da existência humana, isto é, quando os homens viviam em pleno estado de natureza. A visão hobbesiana do mais primordial dos instintos humanos é o desejo de não haver limites aos desejos, onde nas condições mínimas de sobrevivência é cada um por si.
                Gostemos ou não do que nos propõe Hobbes , é necessário antes entendê-lo. Hobbes é bastante claro e inovador (e porque não dizer subversivo frente às ideias até então preponderantes) quando demonstra que a felicidade não é um fim em si mesmo, e que lá se alcançando se repousa flutuante na calmaria morna e tranquila das águas perenes da felicidade. Nada disso, diz Hobbes. A felicidade é inalcançável primeiramente por não ser um lugar, porém uma pretensão. O desejo não repousa, afirma Hobbes, pois somos constantemente inquietos a nos movimentar. Conquistado um objeto de desejo ou realizado um desejo, um outro logo toma seu lugar. “A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo”.
                Essa insaciabilidade desejante humana também encontra eco em Freud, mormente em seu conceito fundamental do Princípio do Prazer, princípio este que é inerente e basilar a todo psiquismo humano. Em O MAL ESTAR NA CIVILIZAÇÃO escreve Freud que “os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos  deve-se  levar em conta uma poderosa quota de agressividade”. E aqui Freud nos sugere enxergar no interior das obscuras entranhas humanas a pulsão agressiva.
                Antes de Freud, portanto, Hobbes em sua obra já nos reserva um espaço a refletir os desejos e as paixões. Assim como o homo freudiano o homo hobbesiano é um ser desejante e passional, em constante busca pela satisfação. E como o desejo é um movimento interno que ruma em direção a um objeto, escreve Hobbes: “não existe uma perpétua tranquilidade de espírito, enquanto aqui vivemos, porque a própria vida não passa de movimento, e jamais pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como não pode deixar de haver sensação”.
                 Temos aqui, então, uma mudança de paradigma em relação à felicidade. O foco não recai na felicidade como a tranquilidade e o repouso de uma alma satisfeita e realizada, mas sim na ideia da felicidade como uma condição ativa, condição ativa esta movida pelo fomentar contínuo do desejo. A felicidade, pois, não é o objeto último do desejo. A felicidade da realização de um desejo é momentânea, visto que a felicidade advinda pela realização desse desejo é apenas uma passagem para outro desejo que, por sua vez, busca a felicidade de sua realização. E assim sucessivamente.
                Movimentamo-nos pelo prazer e pela dor. Aproximamo-nos do que é prazeroso e nos afastamos do que nos causa dor. Ou como diz Hobbes:  “o esforço, quando vai em direção de algo que o causa, chama-se apetite ou desejo... Quando o esforço vai no sentido de evitar alguma coisa chama-se geralmente aversão”. E nos mecanismos naturais do desejo o prazer de usufruir da satisfação de um desejo consumado é apenas ponto de partida para o desejo seguinte. Assim entende Hobbes:  “sendo a causa disto que o objeto do desejo do homem não é gozar apenas uma vez, e só por um momento, mas garantir para sempre os caminhos de seu desejo futuro”.


             
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Os instintos agressivos – Freud disso bem sabia – são inimigos da sociedade. Nós humanos aprendemos de cedo que devemos abrir mão de alguns desejos primários para podermos ter as benesses de uma vida em civilização. O pretenso poder do desejo individual é assim trocado pelo poder assegurador do grupo social. Tal troca de poder inaugura o que chamamos de civilização humana. É na renúncia (mesmo que parcial) de nossa infantil onipotência que surge o cimento que forma a coesão grupal. Não há, pois, sociedade e vida social que não tenha nossa cota
per capita de renúncia.

Dentro da perspectiva puramente de sobrevivência e evolução, o ser humano muito antes de desejar ser bom deseja o que lhe é bom. Para isto é necessário discernir o que lhe faz bem e o que lhe faz mal, com vistas a salvaguardar a própria preservação. Como escreve Cláudio Leivas, em INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA E MORAL DE HOBBES, “A necessidade de discernir objetos bons de objetos maus encontrará sua formulação mais radical na explicação hobbesiana que o indivíduo humano deseja acima de tudo evitar a morte e que por esse motivo ele considerará a preservação o seu bem maior e a morte o seu mal maior. A necessidade de distinguir corretamente objetos bons de objetos maus provoca uma alteração fundamental no indivíduo humano. Ao posicionar-se desse modo o indivíduo vai além daquela inclinação que visa à preservação da vida e das partes do corpo – isto é, além daquela condição básica e fundamental que parece enclausurar o homem em sua natureza física – o homem revela-se finalmente um ser racional”.

                Pelo acima exposto, vê-se que a passagem do homem natural para o homem racional se faz por questões de preservação e sobrevivência. Na busca pela saciabilidade de seus desejos alguns desejos, ao invés de resultarem lhe serem bem, provoca o mal. Assim o ser humano é levado a abdicar desses desejos com vistas a se salvaguardar. Em outras palavras, alguns apetites não satisfeitos garantem a própria sobrevivência. Algo que Freud também diria com termos do tipo “Princípio do Prazer” versus “Princípio de Relidade”.


                Sim, somos todos seres que atraídos nos aproximamos do que nos faz bem e nos dá prazer e temos aversão e nos afastamos do que nos faz mal e nos dá desprazer. É a base da natureza que está no homem, seja ele o mais civilizado possível. Gostemos ou não, o animal racional que somos antes de ser racional é animal. Embora culturalizados sejamos, vivemos sob a batuta da regência da ordem natural da vida. O animal racional que somos sabe que o nosso maior bem é continuar vivo e para isto utiliza de suas qualidades racionais para segurar a natureza, controle este que se faz mais do que necessário para se preservar o maior dos bens naturais: a vida. Somos todos, portanto, qualquer ser humano, um lobo social

Joaquim Cesário de Mello

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