domingo, 11 de outubro de 2020

A OVELHA DESGARRADA DO REBANHO

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Não é fácil ser singular, embora seja através da singularidade que nos tornamos distintos, particulares e únicos. Não é nada fácil ser singular, pois significa viver a existência de maneira una, como mais nenhum outro. Realmente não deve ser assim tão simples ser singular. E por que será, já que a singularidade, por ser fundada na interioridade, faz-nos ser o que deveras somos? Talvez porque em um mundo social onde indivíduos parecem ser produzidos como em série seja difícil ser singular. Em uma sociedade cada vez mais tecnológica o ser humano vai se coisificando e, assim, se transformando naquilo que Marcuse denominou de "homem unidimencional", isto é, consumista, conformista e acrítico. Ao impor seus padrões nas pessoas, a sociedade capitalista e consumista nivela-os tornando-os quase que iguais. O pensamento único predomina nas consciências humanas. Exemplo melhor disso é a moda e os modismos. Marcuse à sua época tinha uma visão sombria do homem contemporâneo que se formava então. Hoje, sombrio é pouco, Vivemos tempos de nevoeiros mentais e de brumas criativas. A safra é parca.
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Ousar ser si mesmo, separar-se da multidão. Kierkegaard falava do "eterno zero", isto é do homem resignado que se inclina a se assemelhar a tantos que apenas seguem o curso "normal" das coisas, impreocupados em se distinguir uns dos outros. É muito mais simples se deixar levar pela maré; ser - como diz o filósofo - uma imitação servil. A doença mortal que corremos o risco de ser acometidos é o de desaparecer enquanto sujeito no meio do rebanho e da manada. O distanciamento em relação a nós mesmos em pró da dissolução na multidão não nos parece mais uma ameaça possível, mas sim uma acontecimento já em cena há algum tempo. Pobres de espírito, sedentários mentais, apáticos e limitados, o homem dos dias atuais, em sua enorme maioria, carece de originalidade.


Resultado de imagem para singularidadeEm tempo igualitários e massificados ser singular é ser diferente. Tomar atitudes que ninguém toma e escolher percorrer caminhos virgens ou pouco pisados é ter - como diz o ensaísta e poeta Agostinho da Silva - "a coragem de ser cão entre as ovelhas". É preciso ter raça pra não se adequar e não ser menos do que se é ou do que se pode ser. Pensar diferenciado pode ter lá seu preço. Pensar por si mesmo, ser um sujeito-crítico, dizer não a antropofagia reinante em uma sociedade pós-moderna que a tudo devora, resistir à dominação ideológica, é ser um indivíduo verdadeiramente individual no sentido de sua especificidade singular, idiossincrática e potência criativa.
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Pela ótica acadêmica muito se discute entre ser um sujeito autônomo ou ser um indivíduo descartável. Evitando alongar sobre tal embate, podemos resumir que para ser um sujeito autônomo é necessário se interrogar. O próprio termo autonomia é definido como a capacidade de autogovernar-se e autodeterminar-se. Um sujeito autônomo, pois, é aquele que gere com liberdade sua vida e efetua conscientemente suas escolhas. O escritor português Vergílio Ferreira, inclusive, é contundente ao dizer que se deve dizer não à liberdade que é oferecida, afinal a liberdade de uma pessoa não passa pelo decreto arbitrário dos outros. E continua afirmando que é preciso dizer não à igualdade quando esta nos nivela pelo mais baixo que existe em nós e não pelo mais alto que igualmente existe. E conclui que se "é do não que te limita e degrada que tu hás-de construir o sim da tua dignidade".
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E por que tantos de nós queremos ser tão iguais? Se todos fossemos iguais não haveria cada pessoa, cada indivíduo, cada personalidade, cada subjetividade. Muitos querem se parecer com a maioria talvez para se sentirem aceitos, supostamente ou pseudamente aceitos. Suposta e pseudamente aceitos porque se assim for a pessoa seria aceita ou amada por aquilo que ela aparenta ser e não pelo que ela realmente é. Mas é tão difícil ser quem você realmente é. Parece ser mais fácil esconder-se por detrás de padrões socialmente valorizados, embora isso possa no médio e no longo prazo cobrar seu preço, o preço de ser inautêntico. Ser-si-mesmo, ter sua maneira peculiar de ser e de existir, é renunciar à convocação que nos fazem de ser qualquer um do outro, isto é, ser como os outros são ou como os outros querem que sejamos. Mesmo que façamos parte de uma coletividade, somos acima de tudo uma pessoa, não uma impessoalidade amorfa mesclada a uma multidão amálgama de um rosto único.

O romancista e crítico literário Paul Bourget já dizia que "é preciso viver como se pensa, caso contrário se acabará por pensar como se tem vivido". Ser autêntico também acaba sendo uma certa luta interna consigo próprio, afinal os ensinamentos emitidos por nossos pais, professores, família, mídia, comunidade e o mundo ao redor, acham-se entranhados em nossas mentes desde há muito tempo. O "eu interior" muitas vezes é uma imagem construída cheia de convenções, ilusões, fantasias e cobranças. O falso-self que tanto nos fala Winnicott é uma espécie de segunda pele a nos encobrir. O verdadeiro-self, ou seja a nossa essência autêntica, é um potencial - um potencial que necessita se transformar em ato, ação e vivência.


Nos contos infantis é bastante conhecida a história do patinho feio. O patinho é feio não porque ele seja de fato feio, mas sim porque ele não é igual aos demais - na verdade sequer ele era um pato, porém um cisne. A mentalidade do conjunto de pessoas que compõem o que chamamos de maioria geralmente tem dificuldade de aceitar e lidar com o diferente e com a diferença. O singular - aquilo que se distancia do plural - frequentemente incomoda.
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A questão dedicada a tentar responder como e até que ponto as forças sociais moldam a subjetividade individual é ampla e profunda. Sequer caberia em um espaço de livro volumoso quanto mais em um estreito espaço de blog. Fica aqui, pois, o alerta a se pensar sobre a conformidade frente às pressões sociais. Uma pessoa em conformidade acrítica é uma pessoa desindividualizada no sentido de massificada. Um indivíduo propriamente dito, com ideias e gostos próprios, e neste sentido (stritu sensu) autônomo, não é caracterizado pelo que ele faz, mas sim pelo que ele pensa e pelo que ele é. Forças inconscientes ao ego consciente - não somente de ordem instintual ou pulsional - estão à serviço de processos sociais de estandardização de corações e mentes. Paranoias á parte, comungamos com Adorno no tocante que o sujeito psicológico condicionado e massificado pela sociedade se torna coisa, ao se dissolver sem perceber na maquinaria da produção social, transformando-se assim em indivíduos esvaziados de verdadeiras individualidades e valores. 

Joaquim Cesário de Mello




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