SOB A LUZ DE SETEMBRO
O sol retoma mais uma vez o
seu lugar. Foram-se os acinzentados céus umedecidos dos dias anteriores. Pouco
a pouco o suor volta a me acariciar a face e a evaporar invisível rumo ao
acumular das nuvens do inverno que ainda não se fez presente. O meu amanhã é
feito de chuvas que de mim vieram, pois é de mim que brotam dilúvios e
torrentes. Agora me liquefaço para depois chorar sobre o que vai restando de
mim neste corpo perambulante de anos, cujas moléculas e células vão se
despedindo tão diminutas como diminutos são os segundos. Meu caminho não é de
pedras, porém de salpicos que deixo como rastro no despedaçar de mim. Quem
quiser me encontrar onde hoje estou é só seguir a trilha de átomos que solto
como pegadas no itinerário deste meu destino. Estas migalhas deixadas são como
um novelo de linha que carrego para não me perder em meus próprios labirintos.
Estes dias amarelos e
luminescentes doem-me aos olhos fatigados. Sou um rio invertido que quanto mais
distante da fonte estou menos volumoso fico. Receio secar antes de chegar ao
mar. A velha casa de onde brotei já não existe mais. Nada que me era antes
existe mais. Por isso sou mais velho que a velhice das coisas velhas – elas
ainda subsistem. O cenário da minha infância e eu menino nele brincando já
encerrou faz tempo as cortinas daquele palco impregnado de fadas, magias e
eternidades. Hoje sei que tudo que é perene um dia finda. Hoje sei o que quando
criança então não sabia: não sabia da morte e de sua fria foice, até o dia em que minha avó e meu
pai depois se foram. A inocência sumiu assim sem aviso, súbito e de repente.
Após setembro três meses
faltam para completar o ano. Quantos setembros por fim me faltam para completar
a vida? Provavelmente menos dos que os dias que agora tenho até o réveillon
mais próximo quando celebrarei o reiniciar dos novos dias. E regressarão as
estações, as estiagens e as chuvas. O sol irá amanhecer no igual horizonte e
irá aquecer outros homens neste mesmo lugar em que já não estarei. Triste esta
minha sina e futuro: ser esquecido pelo sol e desaparecer no vento.
Aqui em setembro reconheço que jamais cresço, pois lento desapareço. Inicio o exercício da queda na certeza de que quando meus olhos se fecharem ficarei com a escurecida lembrança do sol se apagando. Não quero prantos, missas ou velas, nem sequer fitas ou rosas amarelas. Não quero despedidas e adeuses, mas permanecer em algum lugar mesmo que esquecido nos recuados recantos da memória de alguém, como a franzina recordação de um sol engolido pela boca faminta da noite.
Não esperem que lhes aguardem do lado de lá, pois é possível que não exista o lado de lá e que também ninguém está a me esperar. Vou somente mergulhar nas brumas do esquecimento e sumir no fundo mar oceânico dos tempos em que acreditava em fadas e o mundo era tão encantado quanto as bolhas de sabão. Lá encontrei meus mortos e meus perdidos. Percorrerei infinitamente os corredores de minha casa de menino, ouvirei escondido as conversas de minha mãe e pisarei mais uma vez descalço o piso de taco do quarto de onde nunca deveria ter saído. Quem sabe se finalmente acharei o soldadinho de chumbo extraviado; e então rodopiarei em um redemoinho de felicidade onde jamais nenhuma vez mais serei sequer abandonado. Desocupar-me-ei assim, pois, da vida para deixar de ser deixado.
Joaquim Cesário de Mello
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