domingo, 17 de janeiro de 2016

O HOMEM À MARGEM DA CIDADE

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O ano que se inicia é igual ao que passou, já que os relógios não distinguem os dias: todos têm as mesmas horas e os mesmos minutos. O que muda é a seqüência dos números nas semanas dos calendários e um ou outro amigo que se foi, um ou outro que ficou. Se um dia não é mais que duas voltas de um ponteiro - quantas voltas deve ter uma vida inteira? Poderia com tais idéias ocupar a mente, mas nelas não pensava. A uma mente despida de pensamentos, sobra-lhe o interior oco de palavras, o indivisível do ser. Cada homem, todo ele, dentro de si, é primariamente um homem baldio, pois o desencontro vem sempre muito antes que qualquer encontro. O rosto de alguém é alguém que não se conhece.
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A madrugada é a tarde da noite e a ressaca do dia. Podia-se ainda ouvir o frágil rebentar de longínquos e atrasados fogos que rareantes explodiam por detrás dos edifícios que apontavam à lua, ao invés de arranharem o céu. O mar estava quase distante. Preferia assim a quietude companheira dos rios, talvez por temer oxidar de salinidades e agitos. Alguns poucos eram como ele: desconhecidos entre desconhecidos, melhor do que em meio a conhecidos. Doía-se menos. Um clima de cumplicidade irreconhecida se misturava ao fino frio do fim da noite. Sorveu em um só gole todo o conhaque que continha o copo. A quentura dominou-lhe repentinamente a alma com a leveza de uma transitória embriaguez, talvez pelo estômago vazio, fazia horas que trocara o corriqueiro jantar por um sanduíche de queijo e mortadela. Um tanto tonto, porém insuficientemente, pediu a conta e pagou, sem antes solicitar outra dose.
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Caminhava agora pelas ruas com a inabalável certeza de que chegaria, afinal chegar era o prazer de depois partir. Pisava sem pressa o chão das calçadas e os asfaltos da cidade que era sua. Nela nasceu, cresceu e haverá um dia em que nela se enterraria. Quando por baixo dela viver, outros a pisarão com o mesmo cuidado com que pisa sua infância, seu passado, sua história... Os pés do adulto que o corpo leva trilham as pegadas do menino insone e traído. Várias vezes passou ele por aquelas ruas e pontes, como várias vezes passará, até que passar não lhe seja mais nenhuma obrigação.
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Da cidade herdara o prenome e sobrenomes, bem como os seus desígnios e destinos. Seu nome o revestia de ser exatamente o que não era: o desejo de quem o batizou primeiro do que um padre. O batismo de um nome é acima de tudo o legado de um sonho, e se o filho é o espólio silencioso de um sonho, o nome deste é sempre a frustração de um outro. Fadado ao insucesso, restava-lhe a vida inteira para lembrar que ao nascer já não era quem nunca fora. Chamava-se pelo nome do avô materno a quem jamais conhecera. Uma mãe não devia, afirmava consigo e tomado pelo pensamento, parir um pai, pois pais também se fazem de rupturas e cortes. Pudesse adotar números em vez de letras, adotaria o um e o sete. Setenta e um ou dezessete, pouco importa, melhor assim seria do que já era.
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Ali ia o homem margeando o rio que margeava a cidade que margeava sua vida. No limiar dos seus limites amanhecia o amanhecer, embora ainda estivesse um pouco escuro e se iluminasse das luzes dos postes e da matina. A princípio impercebeu que rumo ou rotaseguia, tão somente continuava como se o continuar fosse a tarefa dos que ficaram. Quando por si se deu, logo compreendeu que o longo muro que o seguia feito cachorro sem dono e que se findava em um largo e elevado portão de ferro era todo o cemitério. Plantado como um poste se planta, aguardou o dia com suas claridades e conseqüências - acaso passasse alguém no adiantado daquela hora, imaginaria ser ele uma assombração. Quando abriram o pesado portão não se importou com o susto do zelador, continuou. Consigo não trazia nada além da roupa do corpo e suas lembranças, lembranças estas que depositaria, que nem flores, no jazigo onde estavam os nomes da sua família.
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Se me perguntarem se ele voltou ou se ele ficou, não saberei neste instante responder. O que apenas sei foi que ele não escutou, ou não quis ouvir, quando o zelador educada e timidamente pronunciou um distante, como distante é o mar: - Feliz ano novo.

Originariamente publicado em:
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Joaquim Cesário de Mello

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