domingo, 20 de dezembro de 2015

QUISERA NASCER MARIPOSA





Quisera nascer mariposa e habitar debaixo dos móveis, descobrindo as obscuridades secretas das mesas. Na embriaguez entorpecida da luminosidade do dia, percorreria em seu declínio os meandros labirínticos do meu cotidiano. Sem pernas ou rosto me restariam asas aveludadas e débeis antenas que nem finos dedos tateando o ar do mundo e suas gravidades noturnas. Em patas de inseto sustentaria o frágil corpo e suas amarguras, tão logo repousasse quieto nas intimidades das paredes. De perto as invisíveis rugas das superfícies são profundas fendas por onde escorrem rios de tempo.

Em minha nova morada de mim abdicaria dos ecos de recordações das antigas clausuras infantis, onde, na imobilidade do voo, me protegeria em casulos tecidos de seda e pelo. A um homem adulto e envelhecendo a infância é só antiguidade, porém para as mariposas é abandono e desconhecimento. As larvas recém saídas dos ovos devoram famintas e insaciáveis seus breves ventres (a maternidade engolida alimenta assim o sono dos que aguardam asas). É nos sonhos de mariposa que libertar-me-ia dos pesadelos de mim, pois em meus humanos devaneios somente sonho o sonho dos alados.

Se a cada repente me surpreendo, inventar-me-ia então a cada voo e pouso. Deram-me a vida e não me perguntaram o destino, batizaram-me em enxovais e nomes que não escolhi, ensinaram-me dialetos e palavras que já não pronuncio, mudaram-me tetos e vizinhos sem me consultar, retiraram-me amores antes mesmo que eu os soubesse amar (no balanço de uma trajetória pouco menos ganhei que perdi). Estou hoje tão avesso de mim que me recapitulo em diversas translações. Triunfante, por um instante, sou, nesta vaga hora, um homem findo e uma latejante imaterialidade que se suscita. Não concluo meu parto, não me crio, quem sabe por medos ou se por impossibilidades (engordo-me de negações), apenas me aparto e me distancio das resignações, mais uma vez. Protesto! Há em mim ainda uma brisa suave de revolta, embora jamais entendam aqueles que comigo convivem na cumplicidade de nossas conversas.

Como mariposa vou me alimentar de rosas e orquídeas; pra que sabonetes ou perfumes se em minha boca trarei o néctar das flores? Em meu impreciso adejar circulante não mais necessitarei das cordialidades corriqueiras com as quais me sufoco de acenos e cumprimentos. A vida não poderá mais me atingir com suas dores e exigências – os insetos não sofrem de existências ou separações, somente padecem de esmagamentos. Mariposas não sabem de si e de suas perdas, se contentam com o mínimo de seus instintivos atos: repetidamente vão... sobrevoam... voltam... reiniciam... jamais se frustram; são elas a natureza nas casas e o contrário das convenções. Discretas insistem no sigilo dos escuros – se quisessem famas ou brilhos não seriam mariposas e sim borboletas ou vagalumes. Cobiço-lhes os anonimatos dos cantos em que sossegam até o próximo voo.

Se por acaso houvesse antes sido mariposa, não carregaria agora tantas lembranças e urgências, nem sentiria o que dilacera em meu interior. Na insignificante pequenez, oculta do sol das manhãs, encontraria meu bom tamanho (preciso logo diminuir para voltar a crescer). Contudo, Deus não me determinou asas, só crepúsculos; e as folhas que me alimentam são secas feito este despetalado peito. O céu é tão longe e tão quente, assim como o azul-amarelado da lâmpada que me hipnotiza e me derrete os sonhos nas noites que trago dentro de mim.

Joaquim Cesário de Mello

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