domingo, 30 de agosto de 2015

A DOR DA NÃO RESPOSTA

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A partir de uma colocação de uma aluna em sala de aula, devolvo-lhe a indagação que compreender muitas vezes passa por descompreender. E aí ela me retruca "mas isso é uma viagem". Realmente, saber é uma viagem truncada e intricada, cheia de curvas, atalhos, becos sem saída e voltas, muitas voltas, idas e vindas, avanços e recuos, sendas e trilhas, por meio de ruelas estreitas, veredas, desertos, vielas e abismos sem fim. Difícil conviver com o mistério de não se saber uma resposta. Poucas coisas devem ser mais angustiantes do que não se ter respostas. O desconhecido, o indefinido, o obscuro, o estranho, o misterioso e o incógnito geram desconforto, tormento e aflição. Como já dizia Freud, a angústia "tem uma qualidade de indefinição e falta de objeto". Em termos filosóficos a angústia é uma característica fundamental do existir humano, afinal, segundo Heidegger, "a angústia é a disposição que nos coloca perante o nada".
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Necessitamos de respostas, qualquer resposta. Entre várias perguntas que não temos respostas, a morte é uma das mais angustiantes, senão a mais. Como certa vez escreveu Rubens Alves, "da morte nada sabemos. Só sabemos as estórias contadas do lado de cá" (estória com "e" mesmo, segundo o escritor). A morte vista como desconhecido nos causa medo e temor; afinal o que é que temos do lado de lá?, perguntar-se-ia alguém. Não há resposta certa ou errada para tal pergunta, apenas silêncio, mistério, vazio e conjecturas, muitas conjecturas e especulação. Parafraseando Pascal, o silêncio eterno do espaço infinito e que ignoramos nos apavora. 
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Esse é o mote, isto é, a essência da história em que se desenrola o seriado televisivo da HBO, The Leftovers, O tema é original e inovador, bem como a série é insidiosa e ardilosamente atraente. O produtor Damon Linfelof tem em seu currículo um outra aclamada série, Lost. Se em Lost tínhamos o drama com ares de ficção científica, em The Leftovers (baseado no livro de Tom Perrota, que aqui também é co-roteirista), o inusitado se faz de imediato presente. Logo na abertura somos levados à história surreal onde 2% da população mundial, de repente e ao mesmo tempo, desaparece como que do nada e para o nada. Não se sabe o que aconteceu. E o contexto diegético da narrativa pula para três anos depois do intricado fenômeno. O que aconteceu com quem desapareceu não importa ser abordado, pelo contrário, o que é profunda e gradualmente abordado é o que aconteceu com quem ficou - daí o título The Leftovers, que significa algo como "resto", "sobra", ou seja, os remanescentes, os que sobreviveram à perda. Tratando-se de 2% da população geral (cerca de 150 milhões de pessoas), direta ou indiretamente todos perderam um ente querido ou conhecido, sejam pais, filhos, amigos, parentes. esposas/esposos, famílias inteiras. Os remanescentes a tal verdadeiro apocalipse humano têm que continuar vivendo após o desnorteio da tragédia sem explicação, principalmente que nada mais acontece depois do arrebatamento. Tem-se que prosseguir a vida sem respostas às inúmeras perguntas suscitadas pelo enigmático desaparecimento. É aqui que brilha a intelectualidade do texto.
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A dor de quem ficou. O sofrimento de uma sobra de vida sem resposta. Por que aconteceu o que aconteceu? O que houve? Para onde foram os impetuosamente desaparecidos? Foi um ato ou castigo divino? Um arrebatamento bíblico? O imponderável acaba resultando em seitas religiosas, gurus santificados, profetas delirantes, igrejas esvaziadas por fieis revoltados com Deus, e culpa muita culpa, saudade, tristeza, remorso e inconformismo. Não vamos nos estender aqui sobre a série em si, seus maneirismos, estilosidades filosóficas, clichês, sua difusidade e suas aqui e acolá afobações. Cada um que assista à série (em primeira temporada com a segunda agendada para outubro próximo) e tire suas próprias interpretações e impressões. Instigou-nos a temática: como viver com a dor da não resposta.
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Tudo que é vivo caminha para seu fim. E o ser humano que possui a consciência da vida também tem a consciência da finitude e a percepção de que somos destinados a morrer. Se a morte é inerente à vida, para o ser humano ela é uma inerência angustiosa pela própria percepção e consciência de sua inevitabilidade e da transitoriedade da existência. Fardo pesado este. Como refere o filósofo e ensaísta Luiz Felipe Ponde, "o homem é o ser que leva o cadáver nas costas a vida inteira, pois sabe mais do que deve e menos do que precisa". Sabe mais do que deve por saber-se finito. Sabe menos do que precisa por não saber o que acontecerá com ele quando não mais existir.
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O que existe depois da morte? O céu, o purgatório, outra vida, o nada? Vivemos sem a resposta. Vivemos sob a ameaça do fim e do nunca mais. O psiquismo é vulnerável para lidar com tamanha questão desconhecida e inexplicável, restando-lhe a imaginação para substituir o inconcebível. Abre-se, então, a brecha para o anímico, o espiritual, o místico, o mítico, o sobrenatural, o fantasmagórico, o religioso, o transcendental e a fé. Quantos deuses já não preencheram o vazio do secreto e do desconhecido? A psiquê frente a sua impotência em relação à morte e a sua obscuridade sobre a mesma, transforma-se, assim, em alma com a sua intrínseca ideia de imortalidade. Desse modo o que antes era puramente incógnito se torna mágico. O desejo contiguamente contagia os processos mentais, e os pensamentos se sobrevalorizam frente ao mistério antes insondável da realidade. Como diz o poeta, "a morte não é morte da vida: apenas novas formas de vida" (Casimiro de Brito).
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A mente humana não consegue não conceber algo, torna o incompreensível em imaginável. E é por isso que acima disse que o texto da série The Leftovers, mais precisamente a ideia central de onde se demanda a narrativa, tem seu brilho. Somos todos - os ainda vivos na face da Terra - os que sobraram ou que ainda não foram levados pelo Criador. Os remanescentes da vida, na presença do imponderável, perturbam-se. Viver é um grande e interminável luto que só termina quando a vida acaba. Mas acaba assim e pronto? Mais nada? Precisamos, pois, de algum conforto - conforto para o inevitável sentido do desconhecimento. Em 1 Coríntios 15:51-52 é dito: "eis que eu digo um mistério: nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trombeta. Pois a trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós seremos transformados".
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Nós, os viventes, somos os que se contorcem psicologicamente para entender "o que estamos fazendo aqui", principalmente aqueles que perderam alguém significativo e que necessita continuar existindo e tendo que digerir as ausências e os esvaziamentos. A morte não dói para quem morreu, mas sim para quem ficou. A dor é para quem resta e ainda tem que lidar com o que possivelmente não tem, jamais teve e nunca terá resposta. Afinal, como já disse o poeta e dramaturgo Maurice Maeterlinck, "a vida é a perda lenta de tudo que amamos".

Joaquim Cesário de Mello

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