domingo, 29 de março de 2015

OS DOIS LADOS DE UM HOMEM INTEIRO









Você sabia que a expressão "realidade psíquica" começou embrionariamente com Freud em 1895 quando ele antepôs "realidade do pensamento" com "realidade externa"? Já em 1900, com seu germinal livro "A Interpretação dos Sonhos" ele utiliza, então, pela primeira vez "realidade psíquica" quando escreve que "o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo". "A realidade psíquica não deve ser confundida com a realidade material", continua Freud no mesmo texto. Pois é, quantas realidades existem para a mente humana? Eis a questão.
Se a bola tem dois lados, como se respondia antigamente à charada que indaga quantos lados teria uma bola, o ser humano também pode simploriamente ser descrito como constituído de dois lados: um de dentro e outro de fora. Parece que fora do ser humano há o mundo externo e dentro o mundo interno. Se assim for, de que é feito ambos os mundos, ambas realidades? Perguntinha capciosa essa, não? Mas, permitam-nos um pouco "viajar na maionese".
A alma humana, por si mesma, é uma realidade abstrata diferente da realidade concreta e factual das coisas. Aquilo que se mostra ao psiquismo, já ensinava o filósofo fenomenologista Edmund Husserl, não são apenas coisas físicas, mas sim fenômenos à consciência do sujeito cognoscente. Consciência humana e fenômenos são para nós duas coisas embrincadas e indissociáveis. Há, neste sentido, algo de duplo no humano, ou seja, o homem como substância real e o homem como substrato psíquico. Citando Husserl: a alma não tem ‘em si’ como a natureza, nem uma natureza matemática como a coisa física, visto não ter unidade esquematizada... A alma é portadora de uma vida anímica, subjetiva e, como tal, é uma unidade que se prolonga através do tempo.
A psique, aliás o mundo interno psicológico do indivíduo, registra ao longo da vida uma incomensurável série de vivências. Quanto mais remotas forem tais vivências mais as mesmas irão servir de modelos à estruturação da personalidade, cuja base, acredita-se, se forma nos primeiros cerca de cinco anos de vida de uma criança, anos esses chamados de "período de molde". Dentro de tal perspectiva pode-se afirmar, então, que o mundo interno de alguém é um imenso povoado de imagens e modelos oriundos e construídos desde a primeira infância e que servirão de substrato basal para a pessoa humana e sua identidade. Qualquer experiência humana com a realidade, o mundo circundante e a vida é vivenciada de forma psíquica pelo ser humano. A consciência do si-mesmo é paralela a consciência do que está fora e a volta de si. Comumente chamamos tais consciência de EU. A experiência humana internalizada na psique transforma-se em conteúdo psíquico. O que se experimenta através da percepção, das sensações e dos sentidos passa a ter internamente significado psicológico. 
A subjetividade - termo tão em voga nos jargões acadêmicos - é o espaço íntimo do indivíduo humano. Assim, subjetividade, em resumo, é o mundo interno do homem, sendo este mundo interno constituído e composto de coisas imateriais tais como fantasias, emoções, sentimentos e pensamentos. É por isto que nunca um ser humano é idêntico ao outro, haja vista os modos e as matrizes das experiências serem singulares (parecidas até, mas não iguais) e distintas. O processo de subjetivação não é necessariamente pacífico, porém conflituoso. Conflito primeiro entre o narcisismo imperante dos primeiros instante de vida e a realidade. Conflito também entre o indivíduo e o social. Dessas lutas nascem o sujeito que somos. 
Como você, leitor ou leitora, traduziria estas palavras escritas por Clarice Lispector?: "você não acha que há um vazio sinistro em tudo? Há sim. Enquanto se espera que o coração entenda". Em outras palavras, uma cadeira existe sem um ser humano que a olhe? Sim, ela existe de fato, na realidade. Todavia a cadeira por si só não possui a consciência da sua existência, isto é, não existe do ponto de vista subjetivo. Sua existência é seca, oca e sem sentido. 
Em termos da consciência e do conhecimento a função do sujeito (internalidade) e seu objeto (externalidade) é sempre uma relação (sujeito cognoscente e objeto cognoscível) onde o sujeito apreende o objeto e o objeto é apreendido pelo sujeito, O objeto (externo) é o que o próprio nome diz em sua etimologia latina (ob jectum), "aquilo que se põe diante de nós". O objeto, inclusive, nem necessita ser externo (existir na realidade), basta que haja um sujeito pensante que pense nele. Pensar no objeto na ausência física dele, ou na inexistência física dele (por exemplo, fadas, duendes e fantasmas), implica falarmos aqui em dois distintos objetos: objeto interno e objeto externo. O objeto interno, pois, é uma representação psíquica do objeto externo (real ou imaginário). E é disto, pois, que também é povoado nosso mundo interno: de objetos internos. 
O objeto físico é o objeto propriamente dito. Já o objeto interno represente conceitualmente falando em um objeto psíquico. O objeto que o homem vê não deve ser confundido com o objeto físico. Neste sentido a Gestalt formula bem a questão do seguinte modo: o objeto fenomênico (psíquico) é uma configuração construída pelo sujeito sobre os estímulos que lhe chegam e pela maneira como ele as processa. A Gestalt chama isso de estrutura operante perceptiva. O externo e o interno se interinfluenciam. Por isto assim disse certa vez Kahlil Gibran: "a aparência das coisas muda de acordo com as emoções, e assim nós vemos a magia e a beleza nelas, enquanto a magia e a beleza estão realmente em nós mesmos". 

Voltemos agora a Freud citado logo no início deste post. É dele a seguinte afirmação: "As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva". Neuróticos ou não vivemos numa espécie de intermédio entre fantasia e realidade. Nem sempre nos é possível distinguirmos com nítida clareza o que é realidade e o que é fantasia de nossa imaginação. Vivemos imersos na realidade ao mesmo tempo em que a imaginamos. Ao passar pelos filtros dos nossos sentidos e reverberando no colorido de nossas emoções e de nossa história, a realidade in natura é metamorfoseada por nossa subjetividade e passa a ser a realidade que o mundo interno entende como realidade. Daí o dito popular "cada cabeça um mundo". 
Embora a realidade circundante e pura seja comum a todos que com ela convive, cada um irá processá-la em si de maneira particular. Exemplo cinematográfico temos no clássico japonês do grande mestre Akira Kurosawa, no filme Rashomon. Nele há a descrição de um estupro seguido de assassinato que é testemunhado por quatro personagens, além do próprio criminoso e de um médium que diz incorporar o espírito da vítima. Devido ao vários pontos de vistas cada relato é diferente do outro. São, assim, várias histórias sobre um mesma história. No filme Kurosawa aborda a impossibilidade de se obter a verdade plena sobre um evento devido a julgamentos conflitantes. Em Direito sabemos, nos dizeres do jurista Tobias Barreto, que a prova testemunha é "prostituta das provas".
A realidade do mundo e a nossa  crença da realidade da vida - bem nos ensina a pensadora Hannah Arendt - não são a mesma coisa. A realidade do mundo é baseado na durabilidade e na permanência do próprio mundo - diz Arendt - e que são superiores a nossa vida mortal. Já a nossa crença tem haver com a intensidade com que a vida é experimentada e do impacto com ela se faz sentir em nós. Em outras palavras: quando morremos o nosso mundo morre com nós, a realidade fica.
Então, o que é o mundo real? Não sei dizer. O que sei apenas é que a realidade em que vivemos é o mundo em que vivemos. Ou como afirmava Fernando Pessoa, "a vida é para nós o que concebemos dela". Talvez isto o que de fato sejamos: pequenos Dom Quixotes a transitar pela poeira do mundo e pelo transitório do nosso miúdo espaço de vida. Nem sei se este texto é em si verdadeiro, ou tão somente um projetar digitalizado da minha realidade psíquica. 


Joaquim Cesário de Mello

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