domingo, 8 de março de 2015

Iago e outros invejosos



Alguns personagens do teatro clássico e renascentista me são inesquecíveis: Édipo, Antígona, Prometeu, Helena, Medeia (já tão citada), Hamlet, Ofélia, Rei Lear, Cordélia, Macbeth. Todos são heróis ou tiranos que, de algum modo, marcaram a dramaturgia. Seus traços, humanos em demasia, revelam nossa desmedida e trazem um mosaico de atos que, bem ou mal, nos define na virtude ou na miséria . Esses personagens são recortes das realidades que costumeiramente estamos envolvidos. Quantos "Lears", "Macbeths" ou "Helenas" perambulam e repetem seus oráculos nos dias de hoje?

Hamlet e Édipo, já banalizados, visitam o meio "psi" com a desenvoltura de um parente próximo. Contudo, dois personagens, eventualmente esquecidos, chamam-me especial atenção. Otelo, o primeiro, é mais um desses humanos em demasia que traz à tona o retrato falado do sentimento de ciúme. Otelo, "O Mouro de Veneza", casa-se com Desdêmona uma jovem italiana - estranhamente, casam-se escondidos. Como general da guerra contra os turcos, Otelo elege Cássio como seu tenente, deixando de lado Iago - meu segundo personagem - que se julgava, e talvez até fosse, mais apto à ocupar essa função.

Sentindo-se injustiçado, tomado por uma descomunal e silenciosa ira, Iago, inveja Cássio e Otelo e elabora uma complexa trama de vingança contra o Mouro. Monta uma rede de equívocos que levariam a despertar em Otelo sentimentos de insegurança relacionados à lealdade, ou a fidelidade, da mulher. A crueldade psicológica com que Iago espezinha o Mouro suscita uma pergunta: o que seria de Otelo, a tragédia shakespeariana, sem a inveja de Iago? sem a inveja haveria ciúmes? Otelo - intui Iago - é um predestinado à acender seu ciúme adormecido.

Iago é a condensação da inveja. Inveja e ciúme, por sinal, tem parentesco e, em algumas situações, chegam-se a se confundir como conceitos. A inveja carrega o seu ardil, o invejoso nunca admite invejar alguém, oculta-se no sentimento de injustiça, e alimenta-se, num clandestino monólogo, da vingança. O ciúme tende, na sua ingenuidade, a se tornar mais explícito.

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São tantos invejosos nos romances e nos mitos populares que poderia se criar um gênero literário. Ocorre-me sem demora personagens como Caim, do Gênesis, a Madrasta de Branca de Neve, a Rainha da Noite da “Flauta Mágica”, Elisa de “O Vermelho e o Negro” de Sthendal,  Luiz da Silva de  “Angústia” de Graciliano Ramos. Aliás, não só os personagens, mas seus criadores, os escritores, são tomados por inveja.  “Os escritores são invejosos de uma maneira geral”, disse recentemente Jonathan Franzen. Alguns só conseguem admirar apenas os escritores mortos, outros nem isso. Fala-se que Hemmingway teria dito que não gostava de qualquer obra escrita, pois se fosse inferior à sua, seria ruim, se superior seria, ruim.
O orgulho, a vaidade, o narcisismo que acidentalmente abriu um furo para a inveja, fez com que o invejoso como Guido Del Luca - do purgatório de Dante - sofresse com a felicidade do outro. Nas “Confissões”, Santo Agostinho recorda-se da sua infância trazendo a imagem do irmão recém-nascido no seio da mãe: 
”Eu vi com os meus olhos e, observei bem um pequeno tomado de ciúmes: ainda não falava e não podia sem empalidecer, lançar o seu olhar para o espetáculo amargo do seu irmão de leite”. 
Enfim a frase "O sol é para todos" não cabe à boa parte da humanidade sobretudo aos invejosos. Há quem tente dar um ar positivo a inveja, separando a boa da má inveja. Contudo, isso me parece um equívoco: na inveja se dissemina necessariamente um sentimento de ódio e de destituição do outro - e aí, não há bondades. Falar de uma inveja boa seria o mesmo que dizer de um ódio agregador. A inveja inscreve-se numa suposta luta contra carência do mundo, inscreve-se no paradigma malthusiano onde tudo é escassez. Assim como fez Iago, o invejoso sentido-se mais apto, atira o invejado ao ostracismo. A tensão se estabelece entre o lugar da falta do invejoso e o lugar da plenitude, supostamente habitado pelo invejado. Temendo não chegar perto desse outro absoluto, cabe ao invejoso conspirar e aniquilar esse que lhe fez mal. Não interessa ao invejoso estar ao lado do invejado. O mundo, injusto mundo, só lhe cabe.
Marcos Creder
 

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