domingo, 16 de fevereiro de 2014

Uma Vida em Livros



Um dos contos que mais gosto de Clarice Lispector é curto que consta geralmente na lista de melhores de seus textos, embora aqui e ali é esquecido por alguma coletânea. Chama-se "Felicidade Clandestina", uma narrativa autobiográfica  sobre o prazer de ler.  Narra uma passagem da sua infância em que o acesso a um determinado livro era-lhe restrito. O conto “As reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, era-lhe obstruído por outra criança, a filha do livreiro, que sabendo do desejo da personagem - a própria Clarice - tenta com sadismo submetê-la à privação da leitura.  Esse conto se passa em Recife, provavelmente na Livraria Imperatriz - a mesma livraria que conheci e frequentei por toda minha infância.  

Ao contrário de Clarice, tive sempre livros em minha volta. Aos sábados pela manhã íamos, eu e meu pai, ao centro da cidade e lá peregrinávamos pelas livrarias Imperatriz, Livro 7, Livraria Nordeste, Saraiva, Livraria da Editora Vozes, Livraria Síntese, Ediouro, além dos sebos. Acompanhava meu pai, muitas vezes, por não ter o que fazer. Era uma criança tímida que gostava do centro de Recife. Naqueles anos 1970,  não   tinha clareza de que prazer teria em entrar numa livraria, demorar-se, olhar-lhe as estantes, as lombadas de cada volume e, depois de algum tempo, sair e, logo em seguida, entrar em outra livraria e repetir esse pequeno rito. Eu, em meio ao tédio  e serenidade, sentava na seção de livros infantis, folheava  alguns, principalmente os coloridos, e eventualmente, a depender da demora da visita de meu pai, lia livros inteiros.  Entre uma livraria e outra, encontrávamos alguém conhecido, conhecido de sábados anteriores, pessoas parecidas com meu pai, algumas diferentes, talvez excêntricas. O que conversavam? Sobre livros, sobre as coisas da vida, sobre volumes raros - alguns proibidos (estávamos no apogeu da ditadura militar).  Geralmente voltávamos ainda a tempo de almoçar em casa trazendo um ou dois volumes.


Em casa, via meu pai organizar sua biblioteca cuidadosamente. Os livros eram, um a um, envolvidos em embalagens plásticas e constavam na contra capa, escrito à lápis, o preço e a data da aquisição.  Ele me perguntava se os queria ler. Caso eu me interessasse, o livro seria retirado da embalagens e acondicionado numa capa de papel madeira. O livro era-me entregue com muitas ressalvas e recomendações, meu pai oferecia-me como uma jóia rara. A estante da minha casa crescia sobremaneira e hoje entendo que a preciosidade atribuída aos seus livros, explicava-se pela extensa coleção ser uma espécie de biografia de seus interesses. Muitas vezes disse-me com alguma queixa que, no passado, havia emprestado alguns volumes a amigos que jamais devolveram e se perderam para sempre,  volumes tão irrecuperáveis como o esquecimento. Falava com igual lamento de volumes que foram danificados precocemente por mofo ou traça.

Na medida em que o tempo foi passando, o espaço foi ficando insuficiente e a biblioteca já invadia, sem cerimônia, outros cômodos da casa. Crescia, do mesmo modo, a dificuldade de catalogá-los, a ponto de, muitas vezes, por descuido ou esquecimento, aparecer-lhe volumes idênticos - mas que serviam de presentes aos amigos ou a mim mesmo - todos carinhosamente dedicados.

O tempo passou, percebo que passou bem mais rápido do que páginas de todos os livros. 

Há poucos anos, passeando com ele numa livraria - não mais no centro - ele me apontou para um título  e leu em voz alta: “1001 Livros para Ler Antes de Morrer” e, em seguida, fez, com ironia, comentou:
“Bem, como já li alguns desses, vou ter que ler o restante devagar, pois tão cedo estou pretendendo morrer ”, sorriu.

Sua fala apesar de espirituosa,  denunciava o envelhecer - a morte estava chegando, ele já passava dos oitenta anos. Recebi seu comentário com riso e angústia. Angústia porque aquele que envelhecia vivia bem, guardava uma alma jovem. Ele, contudo, realista no seu ceticismo, citava Henri Estienne: “se a juventude soubesse, se a velhice pudesse...”.  

Há dez dias ele se foi, aos oitenta e oito anos - mesmo adoentado, no hospital, perguntava-me com uma voz enfraquecida o que que eu andava lendo…


Há quem metaforize a vida e a morte como um livro que se abre e, que depois de virar-lhes todas as páginas, se fecha. Seria assim? Jorge Luiz Borges no seu conto  “ O Livro de Areia” fala de um livro fantástico em que não há a primeira nem a última página, não havia, portanto, começo nem fim, as páginas eram-lhe  infinitas como grãos de areia. O fato de possuir essa magia que trazia infinitas páginas, seduzia e amedrontava o personagem/narrador. Temeroso de possuir algo tão incerto, resolveu escondeu o livro na biblioteca:  


Não mostrei a ninguém meu tesouro. À ventura de possuí-lo se agregou o temor de que o roubassem e, depois, o receio de que não fosse verdadeiramente infinito” (...)
“Lembrei haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha é um bosque. Trabalhava na Biblioteca Nacional, que guarda novecentos mil livros; sei que à mão direita do vestíbulo, uma escada curva se some no sótão, onde estão os periódicos e os mapas. Aproveitei um descuido dos empregados para perder o Livro de Areia em uma das úmidas prateleiras”


E assim perdi meu pai,  um homem que se presentifica em tudo que sou e serei. Suas infinitas e belas  páginas  estarão igualmente presentes nas prateleiras dessa biblioteca imaginária que nada mais é que sua alma e minha alma - a alma de todos que tiveram o privilégio de conhecê-lo.

Marcos Creder de Souza Leão

6 comentários:

rotina criativa disse...

Encantador.

Anônimo disse...

Muito bom!

Unknown disse...

Você e seu pai foram homens de sorte. Ter um ao outro e poder dividir momentos como esses são para poucos!

tata disse...

Liiindo! Parabéns pelo maestroso pai!

Carla disse...

Que verdadeira ode.

Kamila disse...

Sensível e comovente Creder.