domingo, 2 de fevereiro de 2014

O FEIO EM TEMPOS DE BELO

   





Ser chamado de feio ou se achar feio provavelmente nunca foi algo fácil de digerir. A alma humana parte do princípio de que é única, especial e autoadmirável. Quando percebe a existência dos outros e do mundo ilude-se acreditando que tudo o que está fora dela e o cerca assim existe para idolatrá-la e reverenciá-la. Em seu egocentrismo infantil se acha, em princípio, a coisa mais importante e linda do mundo. Com o tempo e a vivência a mente vai reconhecendo seu engano primário. Porém, ainda lá em seu fundo originariamente narcisista ainda se indaga, como a madrasta de Branca de Neve, se existe alguém mais bela do que ela.
                Quem não gostaria de ser imensamente belo e digno de admiração geral e irrestrita. Humildades à parte, nosso psiquismo é feito dessa necessidade grandiosa. Todavia amadurecemos, às vezes a dura pena. Crescidos, sabemos que somos defeituosos, imperfeitos e falhos. Os espelhos revelam nossas exterioridades corporais. Muitas vezes não gostamos tanto do que vemos. Sequer aceitamos bem o envelhecer de nossos invólucros. Mas o que dizer de quem se acha feio? É diferente de quem não se acha belo. Não ser belo não é sinônimo de ser feio, mas há até quem assim considere.
                Vivemos tempos especulares. Hoje se dá mais destaque ao que se aparenta do que ao que se é. Curtimos o exibicionismo e achamos natural o que é socialmente produzido ou estimulado. Por baixo da atual cultura do narcisismo o Leviatã econômico nos impõe a servidão. E como bois levados ao matadouro, uma imensa maioria caminha mansamente e, pretensamente, satisfeita. Buscamos uma beleza artificialmente construída. Uma beleza photoshop, retocada de botox e plasticamente moldada pelos ditames da moda. E como fica o feio nessa história toda? Aliás, o que é mesmo feio?


Em 1853 Rosenkrantz estabelecia uma analogia entre o mal moral e o feio. O bem associado ao belo e o pecado ao feio, então o feio seria o “o inferno do belo”. Mas será? Será que o belo é o oposto do feio? Associa-se ao termo feio adjetivos como horrendo, asqueroso, grotesco, repugnante, imundo, sujo, obsceno, repelente, deformado, disforme, desfigurado, monstruoso e por aí vai.
A beleza da alma – em termos de virtude – não necessariamente representa a beleza física e vice-versa. Já desde a Antiguidade, por exemplo, temos Helena de Tróia, bela mulher, porém esposa infiel de Menelau. O belo e a beleza parecem ter mais a ver com o desejo, ou a resposta que nos suscitam. Seja lá como for, conceitos de belo e feio são relativos aos períodos históricos e às várias culturas.
Umberto Eco, em seu monumental livro “História da Feiura”, nos abre espaço para pensar a questão em referência a modelos específicos. E cita Nietzsche (“Crepúsculo dos Ídolos”): "no belo o ser humano se coloca como medida da perfeição... O feio é entendido como sinal e sintoma da degenerescência... Cada indício de esgotamento, de peso, de senilidade, de cansaço, toda espécie de falta de liberdade, como a convulsão, como a paralisia, sobretudo o cheiro, a cor, a forma da dissolução, da decomposição... tudo provoca a mesma reação: o juízo de valor 'feio'... O que odeia aí o ser humano? Não há dúvida, o declínio de seu tipo".
Voltando à época atual - que certa vez Lasch denominou de "Cultura do Narcisismo" -, não há nada pior do que a sensação do declínio. Principalmente em um modelo social como o contemporâneo baseado no capitalismo de consumo. Estamos, por todo lado, impregnado de rosto, corpos, magrezas e modelo de beleza ditado pelo mercado. Há uma padronização da estética a serviço da indústria da beleza que movimenta dezena de bilhões de reais, segundo a ABIHPEC (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosmético), isto sem contar o mercado do mundo das cirurgias plásticas, da moda, da farmacêutica, das academias e outros $$$. São tantos os que buscam a aparência perfeita que o Brasil é atualmente o terceiro maior mercado do mundo no assunto. Beleza pra muita gente virou obrigação.

Alguém aí do outro lado duvida que vivemos uma "ditadura da beleza'? E que ser belo e ter um corpo escultural virou produto e mercadoria? A escritora americana Noemi Volf, em seu livro "O Mito da Beleza", afirma que "a beleza é um sistema monetário assim como o ouro". E como ficam os que se distanciam do "belo ideal", que pra muitos é sinônimo de felicidade? Freud, por exemplo, em "O Mal Estar na Civilização" falava dessa sinonímia entre beleza e felicidade como um "sentimento tenuamente intoxicante". Ser feio é excludente em um mundo onde o belo predomina no ideário das pessoas.
Alguém já disse que o corpo tornou-se álibi de sua própria imagem. Nos dias que agora se seguem há muitos (e não são poucos) que sofrem de flutuações narcisistas que a cultura narcísica impõe ou fomenta. Aturdidos vêm com desmerecimento suas autoimagens e diminuem suas autoestimas. Sentem-se como sentia o "patinho feio" do conto de Andersen, sucumbindo o mundo interno pelas pressões do mundo exterior. O mundo das belezas fotográficas e dos retoques idealizados não lhes pertence. Falta-lhes o chão do sentimento de pertença. E Narciso, então, acha feio o que é espelho. 
Gente, beleza não é um caso de vida ou morte não. Entendo, como entende a psicanalista Maria Rita Kehl quando bem dispõe: “a maior beleza está no corpo livre, desinibido em seu jeito de ser, gracioso porque todo ser vivo é gracioso quando não vive oprimido e com medo. É a livre expressão de nossos humores, desejos e odores; é o fim da culpa e do medo que sentimos pela nossa sensualidade natural; é a conquista do direito e da coragem a uma vida afetiva mais satisfatória; é a liberdade, a ternura e a autoconfiança que nos tornarão belas. É essa a beleza fundamental.” Já dizia também o pintorToulousse-Lautrec: "é fascinante descobrir beleza onde ninguém, consegue ver".                                      
   Você, caro leitor(a), é feio(a) ou se acha feio(a)? Bem vindo a maioria. São pouquíssimos os que atendem aos padrões de beleza impostos e ditados pelo momento e pelo mercado. E olha que esses ditos poucos não são tão belos assim, mas são produzidos. Dorme com um deles e acorda no outro dia pra vê como realmente são. Você pode até ter um susto. 
Não belos, somos normais; humanamente bonitos e feios - por dentro e por fora.  Não merecemos sofrimentos porque nossos narizes ou bocas, bochechas, bundas, coxas e seios não são como lá dignos de passarelas. que bom seria que você fosse mais alto ou mais baixo, menos gordo ou mais encorpado, que tivéssemos aquele nariz afilado ou aquela boca carnuda. Mas não somos tão assim. Somos diversificados e diversos. Somos miscigenados. O padrão de uma beleza inatingível não vale mais do que um corpo saudável e uma mente equilibrada.Se no fundo de nossas almas temos a nostalgia de um bebê, lembremos que o que mais quer um bebê é cativar as pessoas e ser amada. E o amor é um sentimento que nada tem haver com o corpo e suas estéticas - isto é atração física. Como escreveu o escritor Marcel Proust, "a verdadeira beleza é tão particular, tão nova, que não se reconhece como beleza". "Deixemos os homens bonitos - ainda dizia Proust - para as mulheres sem imaginação".


Joaquim Cesário de Mello

Um comentário:

cristiane menezes disse...

Recentemente assisti a um curta animado, chamado O Cupido. E o que percebi nele foi o quanto o rapazinho ficou apaixonado por si a ponto de enlouquecer e tentar se matar. Até então não havia lido os comentários sobre o mesmo na página do vídeo, foi aí que encontrei a palavra narcisismo, e eu na minha pobre cultura, não conhecia a história de Narciso que tentou se matar pela mesma justificativa. Excelente fazer um curta com tal tema. Achei dez a ideia. Então pensei, será que é mesmo verdade, pode acontecer, de uma pessoa amar-se tanto a ponto de ficar louca e recorrer a morte? E pensei também, será que no blog de Dr. Marcos tem algo falando sobre o narcisismo. Caramba, a sociedade é narcisista em nome do belo? Será que estou correta em pensar assim! De qualquer forma valeu a leitura. Lembrou-me das aulas de sociologia que obtive com uma turma de publicidade quanto ao belo e feio. Inclusive lembro que a imagem presente no texto de mulheres com as pernas de fora (publicidade da linha de produtos DOVE) causou rebuliço em sala, deu no que falar. Ah o link do curta é este: http://www.youtube.com/watch?v=Pe0jFDPHkzo

PS: Que estranho tem uma loja aqui em Pernambuco que se chama Narciso. Mas por que tal nome?